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Biografia de Roland Barthes conta percurso capaz de energizar outras vidas

Livro de Tiphaine Samoyault, articula análise crítica, apresentação de novos materiais e cuidado com os detalhes
O filósofo francês Roland Barthes Foto: Ulf Andersen / Divulgação
O filósofo francês Roland Barthes Foto: Ulf Andersen / Divulgação

RIO — A nova biografia de Roland Barthes (1915-1980), de Tiphaine Samoyault, articula análise crítica, apresentação de novos materiais e cuidado com os detalhes, tudo amarrado em uma escrita fluida e acessível. A partir da consulta aos arquivos, a diários e documentos pessoais inéditos, Samoyault reconstrói a trajetória de Barthes, enfatizando tanto os eixos principais que organizaram seu pensamento (a moda, a semiologia, a fotografia) quanto os traços subterrâneos que conferem o caráter singular de sua personalidade (a relação com a mãe, o medo da impostura, o hábito diário do piano).

Toda biografia estabelece um pacto com o leitor: é preciso suspender a crença na cronologia dos fatos e imaginar uma vida que possa acontecer de forma simultânea em todos os seus momentos. Samoyault firma esse pacto com muita propriedade, cuidando não apenas do acúmulo de datas, fatos e acontecimentos, mas também da indispensável criatividade formal que deve aparece r no relato de uma vida. Certas cenas de peso — a morte do pai, a aparição da tuberculose, a visita ao Japão — são retomadas ao longo do percurso, mantendo em primeiro plano o caráter não linear da memória e da experiência.

A autora organiza pontos de ruptura na organização da vida, destacando aqueles ocorridos em 1955, 1966 e 1977. Em 1955, a ênfase está em seu interesse pelo teatro e sua atuação política, o que gera atritos com duas figuras de destaque, Sartre e Camus. Em 1966, a ênfase está no modo como Barthes reinventa sua vida e sua obra a partir do contato com novos amigos — com destaque para a jovem Julia Kristeva, recém-chegada da Bulgária. Em 1977, por fim, a ênfase está na morte da mãe, a quem era muito apegado e cuja perda repercute em todas as instâncias de sua vida (Barthes não podia saber que seu luto duraria apenas até 1980, quando ele próprio morreria em consequência de um acidente absurdo).

Um aspecto muito importante da biografia é o modo como relaciona vida e obra, dando conta das várias fases que antecedem a publicação dos livros de Barthes. Boa parte de sua obra é composta por textos prévios, publicados de forma esparsa em jornais e revistas, que ganham roupagem editorial por meio de convites e solicitações. Dessa forma, quando lançados, os livros de Barthes nem sempre estão de acordo com seu trabalho no presente, gerando ruídos na recepção (seja com os alunos que vão aos cursos, seja na imprensa, durante as entrevistas de divulgação).

Os livros de Barthes, retomados a partir do contexto de recepção, recobram frescor e podem ser lidos sob nova ótica. “S/Z”, por exemplo, de 1970, dedicado à leitura minuciosa da novela “Sarrasine”, de Balzac, é evocado por Samoyault a partir das várias cartas que Barthes recebeu logo depois da publicação. As cartas são unânimes ao declarar como Barthes inaugura, com este livro, tanto uma nova prática de leitura quanto uma nova prática de escritura, movimento dúplice que será aprimorado com “Roland Barthes por Roland Barthes”, de 1975, e “Fragmentos de um discurso amoroso”, de 1977.

Este último livro foi especialmente importante, e segue ecoando ainda hoje, sobretudo por sua reativação do “amor romântico” em um espaço da homossexualidade que tanto recusa a condição burguesa quanto prepara o terreno para um discurso sobre os afetos ligado às diferenças e às descontinuidades. Com isso, Barthes acessa o autobiográfico e o autoficcional, mas também as condições de possibilidade de toda uma comunidade, ao mesmo tempo em que reposiciona figuras literárias canônicas como Marcel Proust e André Gide. A riqueza de um percurso biográfico, portanto, se mede não só pelos altos e baixos do indivíduo, mas por sua capacidade de irrigar e energizar outras vidas, ao longo do tempo e através do espaço.

* Kelvin Falcão Klein  é professor da Escola  de Letras da UniRio