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Biografia de Simone de Beauvoir retira escritora de lugar secundário em relação a Jean-Paul Sartre

Autora de 'Simone de Beauvoir: uma vida', Kate Kirkpatrcik diz que contribuição de francesa para a filosofia foi subestimada
Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre em Juan-les-Pins, no sul da França, agosto de 1939 Foto: Coleção Sylvie Le Bon de Beauvoir/Distribuição Gallimard
Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre em Juan-les-Pins, no sul da França, agosto de 1939 Foto: Coleção Sylvie Le Bon de Beauvoir/Distribuição Gallimard

RIO — Quando Jean-Paul Sartre morreu em 1980, alguns obituários do filósofo francês nem mencionavam o nome de Simone de Beauvoir . Seis anos depois, quando Beauvoir faleceu, o mesmo não se repetiu: seu companheiro foi ostensivamente citado como sendo um “incentivador” e um “guru”. Em contrapartida, o “Le Nouvel Observateur” achou coerente homenageá-la publicando uma foto nua, e a “Revue de deux mondes” disse o seguinte sobre a autora de “O segundo sexo” : “A hierarquia é respeitada: ela é a número dois, depois de Sartre”.

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Deparar-se com comentários como este, mesmo em textos mais recentes, foi o que motivou Kate Kirkpatrick a escrever “Simone de Beauvoir: uma vida” , nova biografia de uma das mulheres mais famosas do século XX. Nas palavras da autora, a imagem de Beauvoir foi moldada por “retratos muito parciais, incompletos e, às vezes, maliciosamente seletivos de sua vida e obra”.

Professora de filosofia na King’s College de Londres e estudiosa do conceito de “nada” na filosofia de Sartre, a autora acrescenta:

—Inicialmente, desconfiava da forma como seu relacionamento com Sartre foi retratado, e depois cheguei à conclusão de que sua contribuição para a filosofia dele foi subestimada.

Simone de Beauvoir dá autógrafos em São Paulo, em setembro de 1960 Foto: Coleção Sylvie Le Bon de Beauvoir / Distribuição Gallimard
Simone de Beauvoir dá autógrafos em São Paulo, em setembro de 1960 Foto: Coleção Sylvie Le Bon de Beauvoir / Distribuição Gallimard

Mentes inseparáveis

Kirkpatrick recorre à própria erudição e a diários com pensamentos da jovem Beauvoir antes do encontro com o parceiro para provar tal tese. Como muitas vezes foi dito, Simone conheceu Sartre quando os dois passaram na agrégation de filosofia, disputado concurso público para professores. Ele, com 24 anos, passou em primeiro lugar, enquanto ela, 21, foi a segunda colocada e mais jovem pessoa a ser aprovada no exame.

Segundo Kirkpatrick, a academia francesa e a anglo-saxã têm se perguntado: é possível separar a obra do casal? A questão não é simples de responder.

— Algumas pessoas entendem que Sartre roubou ideias dela. Outros, que a melhor forma de descrever as contribuições intelectuais deles é dizer que são de ambos. Ouso dizer que é impossível separar completamente o trabalho deles, pelo papel tão importante que tiveram encorajando e criticando um ao outro — diz a autora, ao lembrar que também não faltam exemplos de divergências públicas entre os intelectuais.

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Se, em termos intelectuais, a parceria com Sartre foi inseparável, no amor era diferente: viviam um relacionamento aberto. Amparada por cartas divulgadas apenas neste século (algumas em 2014), a biógrafa mostra como Beauvoir viveu grandes paixões com o jornalista Jacques-Laurent Bost, o romancista Nelson Algren e o cineasta Claude Lanzmann.

Simone de Beauvoir com o escritor americano Nelson Algren em Chicago, em 1948 Foto: Crédito: Coleção Sylvie Le Bon de Beauvoir/Distribuição Gallimard
Simone de Beauvoir com o escritor americano Nelson Algren em Chicago, em 1948 Foto: Crédito: Coleção Sylvie Le Bon de Beauvoir/Distribuição Gallimard

A biografia ainda comenta as relações de Beauvoir com ex-alunas durante os anos 1940 — e que quase rendeu seu “cancelamento” à luz do século XXI, diante do desequilíbrio de poder entre ela e as mulheres mais jovens com quem escolhia se deitar. Uma delas, chamada Bianca Bienenfeld, teve um caso com Beauvoir e com Sartre a partir dos 17 anos. Mais tarde, disse que a filósofa escolhia “carne jovem e madura entre suas alunas” para “sentir o gostinho ela mesma antes de passá-las” ao companheiro.

Assim como faz ao longo do livro, Kirkpatrick defende Beauvoir, e lembra que os relacionamentos com as estudantes ocorreram dentro da lei da época e eram consensuais.

—De toda forma, ela se arrependia, porque pensava que não agira com essas mulheres de forma ética. Essas experiências afetaram seu pensamento sobre a ética, antes de escrever “O segundo sexo” — diz Kirkpatrick.

É uma das lições, defende ela, que podemos tirar da vida de Beauvoir:

— Escrevendo este livro, concluí que cada mulher tem que se libertar por si mesma, e reconhecer o impacto de suas ações na vida dos outros.

Capa de "Simone de Beauvoir - uma vida", de Kate Kirkpatrick Foto: Divulgação
Capa de "Simone de Beauvoir - uma vida", de Kate Kirkpatrick Foto: Divulgação

Leia trecho da biografia

A personalidade pública de Beauvoir foi moldada – a ponto de ser deformada – por duas (...) histórias que ela contou em suas memórias.

A primeira nos leva a Paris, em outubro de 1929, quando dois estudantes de filosofia estavam sentados em frente ao Louvre definindo

seu relacionamento. Eles haviam acabado de tirar o primeiro e segundo lugar (Sartre em primeiro, Beauvoir em segundo) em um exame nacional altamente prestigioso e competitivo e estavam prestes a embarcar nas suas carreiras de professores de filosofia. Jean-Paul Sartre tinha 24 anos,

Beauvoir tinha 21 anos. Sartre (conforme a história é contada) não queria a fidelidade convencional, de modo que fizeram um “pacto” segundo o qual eles eram o “amor essencial” um do outro, mas consentiam que cada um tivesse amores “contingentes” paralelamente. Seria um relacionamento aberto, mantendo reservado o primeiro lugar no coração um do outro. Eles contariam tudo um ao outro, disseram; e, para começar, seria um “contrato de dois anos”. Esse casal se tornaria, como disse Annie Cohen-Solal, biógrafa de Sartre, “um modelo para se imitar, (...) pois, aparentemente, parecia reconciliar o inconciliável: os dois parceiros permaneciam igualmente livres e honestos um com o outro”. (...) Eles são um dos casais lendários do mundo. Não podemos pensar em um sem pensar no outro: Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre”.

Serviço: “Simone de Beauvoir: Uma vida” . Autora: Kate Kirkpatrick. Editora: Crítica. Tradução: Sandra Martha Dolinksy. Páginas: 416. Preço: R$69,90.