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Boas apostas na literatura fora do eixo Rio-São Paulo

A mineira Carla Madeira tem como grande trunfo o carinho com que trata a linguagem, enquanto a goiana Fabiane Guimarães apresenta um radar para assuntos que estão na ordem do dia
A escritora Fabiane Guimarães Foto: Divulgação
A escritora Fabiane Guimarães Foto: Divulgação

Dois títulos recém-chegados às livrarias mostram que vale a pena leitores e editoras apostarem na literatura produzida fora do eixo Rio-São Paulo. É o caso de “Tudo é rio”, da mineira Carla Madeira, e “Apague a luz se for chorar”, da goiana Fabiane Guimarães. Cada qual no seu estilo, elas desfiam narrativas bem sacadas e longe de um regionalismo demodê que ainda costuma ser associado a “escritores do interior”.

Com “Tudo é rio”, Carla Madeira concorre a um lugar entre as melhores escritoras do país. Não é exagero. Na sua voz, um triângulo amoroso deixa de ser uma situação banal para tornar-se um evento único (literariamente falando, claro). Seu mérito é o carinho com que trata a linguagem. A prosa é poética sem ser pegajosa, e cada palavra chega no momento certo. Uma habilidade cada vez mais rara. Tudo flui.

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Essa questão da linguagem aparece, por exemplo, quando a autora logo deixa claro que Lucy, uma das pontas do tal jogo amoroso, é uma puta. Chamá-la de prostituta ou nomes afins serviria apenas para amenizar a linguagem bruta e cercear a expressão — cedendo, assim, à histeria politicamente correta. Falando de amores, ciúmes e outros afetos que não cabem em meias palavras, Carla Madeira foge disso a todo momento. Está certíssima.

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Lucy, diga-se, é uma bela personagem. Ainda adolescente, descobre no sexo sua arte, seu prazer e destino, sua vingança contra a vidinha chinfrim. Quando cai de fato no ofício, logo se torna a mais desejada de todas as profissionais, e mantém a fama com gosto. Bonito de ler.

A jovem só tem um ponto fraco: Venâncio, o único homem que não quer nada com ela. Ele se deita com todas as prostitutas, menos com Lucy. Em páginas de alta tensão erótica, ela tenta de tudo para tê-lo. Em vão.

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Mulher de Venâncio, a triste Dalva é a outra ponta do triângulo. Personagem rica, corre à margem de Lucy e do marido e, de repente, toma conta de “Tudo é rio” quando menos se espera. A resolução do conflito entre os três é engenhosa e, naturalmente, não cabe comentar aqui mais nada a respeito. Vale uma conferida sem medo.

Nascida em 1964, Carla Madeira é autora também de “A natureza da mordida” e terá outro romance publicado pela Record ainda este ano. “Tudo é rio” já teve os direitos negociados para virar série em streaming, produzida por Murilo Benício, ainda sem data de lançamento.

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Outra novidade intrigante é o thriller “Apague a luz se for chorar”, estreia de Fabiane Guimarães, de 29 anos. Em pouco mais de 170 páginas, a escritora goiana mostra especial radar para assuntos que estão na ordem do dia, como família, hipocrisia e velhice, entre outros. Mas, para evitar spoiler, é melhor não tratar deles aqui.

No centro de “Apague a luz se for chorar” temos a veterinária Cecília, jovem cheia de minhocas nas ideias por conta de relacionamentos desastrosos — inclusive com a própria família. No início, vamos encontrá-la a caminho de sua pequena Pirenópolis, em Goiás, onde terá que encarar a tarefa de enterrar os pais. Já velhinhos, após 50 anos de um casamento recatado e do lar, os dois foram encontrados mortos juntinhos, de mãos dadas, no quintal de casa.

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Ora, conclui Cecilia, só pode haver algo de muito errado nessa história. O pai tinha câncer em estado avançado, mas a mãe ainda tinha saúde. A jovem desconfia que eles tenham sido assassinados e decide esclarecer o caso por conta própria, já que as autoridades e os médicos locais preferem deixar tudo do jeito que está.

Para confundir ainda mais sua cabeça — que já não é das melhores — entra em cena um meio-irmão de Cecília. Segredinho bem guardado na família, Caio é fruto das andanças do seu velho pelo Norte do país. Ela própria nunca ouvira falar do rapaz, que deixa bem claro: atravessou o Brasil apenas pela herança que o pai teria deixado para ele. Cecília, evidentemente, logo desconfia dele, e aí nos cabe acompanhar suas descobertas.

Seguindo as regras básicas dos suspenses, Fabiane Guimarães nos empurra para caminhos inusitados, despistando daqui e dali, até que o desfecho nos surpreenda. É feliz ao abordar questões contemporâneas à trama principal. No entanto, até mesmo pela extensão do romance, elas acabam ficando na superfície. Dá para entender. Envelopar tantos assuntos em tão poucas páginas é um risco — e o bom é que correr riscos faz parte da arte. Por isso mesmo, Fabiane saiu-se muito bem e, melhor de tudo, já pautou para si mesma ótimos temas a serem abordados com profundidade em seus próximos livros.

Nelson Vasconcelos é jornalista