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Canções do exílio: a pedido do GLOBO, quatro poetas premiados criam versos sobre a quarentena

Marília Garcia, Mel Duarte, Bruno Brum e Daniel Francoy escrevem poemas sobre seus confinamentos
O varal do poeta Daniel Francoy Foto: Daniel Francoy
O varal do poeta Daniel Francoy Foto: Daniel Francoy

RIO - Se Virginia Woolf via no ato de escrever a criação de um “quarto só seu”, o que acontece quando os autores não podem sair de casa? Aonde vai o olhar do poeta quando ele só tem a janela como ponte para o mundo? Quando o seu animal de estimação é sua única companhia? Pedimos a quatro autores — Marília Garcia, Daniel Francoy, Bruno Brum e Mel Duarte — para produzirem poemas que refletissem sua rotina no confinamento.

Ao receber a proposta, o paulista Francoy foi logo compartilhando uma vista da sua janela, que exibe um céu triste e um varal. A visão das roupas penduradas virou o contato com o mundo lá fora. Em seu poema, o vencedor do Jabuti de poesia em 2017 (pelo livro “Identidade”) escreve que “o confinamento se define pelo que está fora dele”.

E o que está lá fora, escreve Marília Garcia (em suas características letras minúsculas), são os amigos, aos quais dedica seu poema. Vencedora do Oceanos em 2018 pelo livro “Câmera Lenta”, ela compôs os versos a partir de fotos de pessoas próximas, apartadas pelo confinamento.

Os autores comprovam que a quarentena pode aguçar o olhar poético. A casa vira o lugar mágico em que tudo pode acontecer. Se no confinamento de seu quarto o francês René Baer pendurava diplomas imaginários e vivia “a quimera em quatro segundos”, o mineiro Bruno Brum conta os passos até a sala e vira “campeão de mundial dos 50 metros quadrados”.

Como nós, e cada um do seu jeito, os autores expressam angústia e ansiedade pelo que está por vir. Enfrentam o momento com humor, ironia ou aquele sentimento agridoce tão familiar nestes dias. E com esperança também. Como escreve a poeta e slammer paulistana Mel Duarte, “até o caos pode ser acolhimento”.

"O resto vem depois"

Bruno Brum

O esboço exige perfeição descuidada.
Conto os passos entre o quarto e a sala,
meço o vão entre o piso e a porta.
Sei de cor a planta baixa do labirinto.
Campeão mundial dos cinquenta metros quadrados,
abro as cortinas e vejo o aterro sanitário
onde os devotos de São Veredito disputam uma partida
de golfe com os veteranos dos recém-demitidos.
As nuvens formam desenhos.
As poças d’água formam desenhos.
Os buracos no asfalto formam desenhos.
As rugas no meu rosto formam desenhos.
Que diabos isso quer dizer?
Guardo a vida num pote de sorvete no congelador.
Dois minutos no micro-ondas e tudo volta ao normal.
Quando as paredes vierem abaixo e o lado de dentro
se misturar com o lado de fora tudo voltará a ser
o que podia ter sido e que não foi.

Ou foi?

Cartas para a redação.

Bárbara Perdigão Brum, seu pai Bruno e o cachorro Pingo Foto: Arquivo pessoal de Bruno Brum
Bárbara Perdigão Brum, seu pai Bruno e o cachorro Pingo Foto: Arquivo pessoal de Bruno Brum

Bruno Brum tem 39 anos e nasceu em Belo Horizonte. É autor de "Tudo pronto para o fim do mundo" (2019).

Crítica: Poemas de Bruno Brum oferecem refúgio em meio ao apocalipse

[sem título]

Mel Duarte

Entre a distância do que os olhos dizem e as palavras enxergam
Existe um corpo negro imerso em pensamentos
Todas as mulheres que nele habitam, falam ao mesmo tempo
E hoje, entendo que até o caos pode ser acolhimento.

Percebi que desatar os nós que me prendem é tão importante quanto firmar os que me fortalecem
E essa força que me puxa pra baixo, mesmo com os pés cansados
Vem pra ficar raiz e me conectar com o passado.

Me pergunto:
De tudo que guardo no peito, o que posso trazer á tona pra me dar mais acalento?
De tudo que ofereço pro mundo, o que posso absorver agora dele
pra me despertar mais conhecimento?


São tantas perguntas, tantos anseios
Essa pausa no tempo, esse silêncio…
Então contemplo o desabrochar da minha orquídea roxa
Enquanto espero pelo prenúncio de novos tempos.

A poeta Mel Duarte e sua amiga Tulipa confinadas em casa durante a quarentena Foto: Arquivo pessoal
A poeta Mel Duarte e sua amiga Tulipa confinadas em casa durante a quarentena Foto: Arquivo pessoal

Mel Duarte, 31 anos, é paulista, autora de "Fragmentos dispersos“ (2013) e Negra nua crua” (2016).

Perfil: Atração da FLIP, Mel Duarte populariza poesia em eventos de slam, livro e disco

"Um morto domingo"

Daniel Francoy

Um modo de pensar o confinamento
é confundi-lo com um morto domingo nos subúrbios
e começar com gestos mínimos: preparar a chaleira
para o café, observar como o vapor que sobe
se esvai no claro sol que cintila oblíquo,
colocar a cadeira no jardim, e ao primeiro
e reconfortante gole pensar é um dia
parecido com aquele poema que Ferlinghetti chamou
"Receita para a felicidade em Khabarovsy ou em qualquer parte."

Então, ao segundo gole, é possível pensar
que o confinamento se define pelo que está fora dele
e com esse pensamento miro a primavera branca
que se alastra pelo muro até ultrapassá-lo.
Em algum momento, o som de um carro que passa
é um alarme ou talvez o lembrete
do que já começa a apodrecer.
Eu sei que em certa praça há um vendedor
de morangos e abacaxis apregoando para a cidade pestilenta.

Ao terceiro gole, o domingo já parece longo demais
e por estar tão protegido sinto-me um deus
sentado no centro da via láctea, impaciente
e entediado por esperar que uma estrela agonizante
colapse em supernova e que a aurora de um dia adiado
me maravilhe com as cores de uma aurora boreal.

O poeta daniel francoy confinado em sua casa Foto: divulgaçao
O poeta daniel francoy confinado em sua casa Foto: divulgaçao

Daniel Francoy tem 40 anos e nasceu em Ribeirão Preto. Autor de “Identidade (2017) e "A invenção dos subúrbios" (2018).

"Os meus amigos são um barato (inventário da quarentena)"

Marília Garcia

a nara leão tem um disco com esse título

fico aqui ouvindo o disco
enquanto penso nos
meus amigos e imagino
qual objeto acompanha
cada um deles
agora

os meus amigos
eu queria estar com os meus amigos
então pedi a cada um
que me mandasse uma foto
de um objeto

#
1 sacola de compras de tecido
do “festival porão do rock”
com a programação das bandas
que tocaram lá:

mundo livre s/a
el mato a un policia motorizado
autoramas
los primitivos
macaco bong
los natas
móveis coloniais de acaju

ela enfrenta o mundo comigo
quando vou buscar comida

(meu amigo ainda vai
buscar comida)

#
essa mesa de madeira
chegou aqui um dia antes de tudo começar
coloquei na frente da janela
e fico sentado nela vendo o dia
passando     fico sentado na mesa
trabalhando

#
minhas pantufas

#
1. chupeta: para a minha filha olívia
2. abridor de vinho: para abrir o carmenère
3. faca: para descascar maçã verde

#
caixas de som de madeira
caixas imensas
que estavam quebradas na sala
sem uso, servindo de apoio
foram compradas nos anos 1970
de um alemão que estava voltando
para casa
família vende tudo
consertamos caixas de som essa semana
agora ouvimos música

#
colchonete, aparelho de ginástica
botão on-off
café
álcool gel
um livro aberto com um parágrafo sublinhado:

"Como sempre na vida, nos acostumamos às situações
mais adversas. Em meio ao caos, dormia melhor quando
ele vinha. Passeávamos só os dois ou com as crianças.
Ele tinha trazido o violoncelo.”

#
dedico aos meus amigos
esse inventário de objetos
em andamento

mandei para eles
uma foto do disco da nara leão
junto com um link do youtube
para ouvir a faixa 4 do disco:
ela vem de muito longe e segue
em frente persistente
destemida e forte

que todos se sintam convidados
a ouvir o disco também

A poeta Marília Garcia Foto: Divulgação
A poeta Marília Garcia Foto: Divulgação

Marília Garcia tem 41 anos e nasceu no Rio de Janeiro. Autora de "Câmera lenta"

"Câmera lenta": Marília Garcia repensa mundo veloz em que vivemos