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Carlos Heitor Cony completa 90 anos de independência

Escritor, que planeja dois romances, fala de inferninhos, ditadura, mistérios da fé e da ABL

FUMAÇAS DE INTELECTUAL. Na biblioteca de seu apartamento, Cony fuma um charuto cubano Montecristo
Foto: Ana Branco / Agência O Globo
FUMAÇAS DE INTELECTUAL. Na biblioteca de seu apartamento, Cony fuma um charuto cubano Montecristo Foto: Ana Branco / Agência O Globo

RIO - Carlos Heitor Cony já foi autor-revelação. Em 1955, aos 29 anos, seu livro de estreia foi considerado o melhor num concurso da Academia Brasileira de Letras (ABL). “O ventre” só não venceu porque seu existencialismo amargo e irônico desafiava a moral e os bons costumes da época.

— Sou independente desde que saí do seminário porque não acreditava mais em Deus — diz o autor, que completa 90 anos amanhã, 14 de março.

Pois Cony seguiu transgressor. Atacou a ditadura em sua coluna no “Correio da manhã”, postura que lhe rendeu seis prisões. Apanhou da esquerda por questionar a guerrilha em “Pessach: A travessia” (1967). Chocou com “Pilatos” (1973), onde um sujeito vaga com seu pênis a tiracolo - é seu livro favorito. Surpreendeu ao parar no auge, se dedicando à reportagens, edição de revistas e adaptações de clássicos. E surpreendeu mais ainda quando, após duas décadas, voltou com o celebrado “Quase memória” (1995), cuja versão para o cinema, de Ruy Guerra, estreia em 19 de maio.

Desde então, publicou sete romances, republicou outros tantos (alguns, "reescrevendo muito") e tem mais dois da cabeça: um projeto antigo, "Missa para o papa Marcelo", sequência espiritual de "Informação ao crucificado" (1961) e "Cinco prudentes virgens", que parte de uma parábola bíblica. Multipremiado, tornou-se imortal da ABL (em 2000) e hoje é reconhecido como um dos principais escritores brasileiros.

— É um maravilhoso romancista, fundamental para a geração que o leu nos anos 1950 e 1960, por trazer o existencialismo de Sartre e Camus para a realidade brasileira — diz Beatriz Resende, professora de Letras da UFRJ. — E foi um jornalista de uma coragem extraordinária contra os militares.

Ruy Castro, jornalista e biógrafo, foi fisgado por suas colunas aos 14 anos.

— Descobri Cony quando ele começou sua coluna “Da arte de falar mal”, no “Correio da Manhã”, em 1962. Ele era debochado, cético, freneticamente independente. Fez a minha cabeça, para sempre. Sempre tive essas suas características como modelo — diz Ruy, hoje seu amigo.

O escritor Michel Laub, colunista do GLOBO, comenta sua versatilidade:

— Para um escritor de hoje, a utopia seria juntar o rigor de “O ventre” com a liberdade de “Pilatos”. Cony mostrou que é possível ir de um extremo a outro sem perder a identidade.

Heloísa Seixas, sua “afilhada literária”, admira sua relação com a literatura:

— Cony costuma justificar o fato de ter ficado mais de vinte anos sem escrever dizendo que “estava se dedicando a viver”. E completa: “O escritor é sempre contra o homem”. Acho isso extraordinário. Essa relação tão verdadeira com a escrita, em que o escritor não faz concessões, é o que mais me fascina nele. E é também o que faz dele um dos grandes da nossa literatura.

Sua mulher, Beatriz Lazta, os três filhos (de casamentos anteriores) e os quatro netos até gostariam, mas Cony não faz questão de festa de aniversário nem de homenagens. Recolhido em seu apartamento na Lagoa, onde recebeu a Revista O GLOOBO, segue curtindo filmes, charutos e (às vezes) vinhos. Também pinta, num ritmo próprio: segundo sua secretária Flávia Leite, todo 1º de janeiro tem quadro novo pronto.

Toda sexta, Cony participa com Artur Xexéo do programa "Liberdade de expressão", da rádio CBN. Colabora com o jornal "Folha de S. Paulo", ainda que perda de mobilidade conse o force a ditar sua coluna semanal — e a usar cadeira de rodas. Mas a memória vai bem. É por ela que ele passeia, afiado, na entrevista a seguir.

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DE VENTO EM POPA. Cony em lancha nos anos 1950 Foto: Arquivo pessoal
DE VENTO EM POPA. Cony em lancha nos anos 1950 Foto: Arquivo pessoal

No dia da entrega do Oscar, sua crônica comentava a futilidade do tapete vermelho. Viu algum dos filmes que concorriam este ano?

Não. Vejo muitos filmes na televisão. Ir ao cinema, sair de cadeira de rodas, é chato. Mas volta e meia, vou.

Algum filme recente o marcou?

“Cópia fiel” (2010), com a Juliette Binoche e um ator inglês. O casal passeia pela Itália, parece que acabou de se conhecer, depois que se conhece há tempo, me impressionou muito. Parece com outro muito bom, “O ano passado em Marienbad”, (1961), clássico da nouvelle vague em que o sujeito insiste que conhece uma mulher, ela nega. Mas o meu favorito de todos os tempos é lá de trás: “Um carnê de baile” (1937), sobre uma mulher que busca seus antigos amores; todos tinham grandes sonhos e fracassaram.

São todos filmes que tratam da memória, um tema central da sua obra.

De fato, é o clima da minha literatura. A mensagem de “Um carnê de baile” é a seguinte: não se deve voltar ao passado. Aquela rua em que você nasceu, na sua cabeça é uma rua larga, iluminada. Você chega lá e… Entendeu? Há uns 30 anos, fui a Budapeste. Fiquei encantado. Voltei depois e achei uma porção de defeitos. A Igreja de São Pedro, em Roma: a primeira vez que vi, fiquei assim, “Ah, isso não existe”. Depois, voltei e achei aquilo tão cafona, carnavalesco. Era uma eleição do papa, o conclave que elegeu João Paulo II.

Quantos conclaves você cobriu?

Sobrava para o ex-seminarista. Além do João Paulo II, os três anteriores, de João XXIII, Paulo VI e João Paulo I, que ficou só um mês, dizem que foi assassinado. Gosto muito dessas histórias.

Fez um livro sobre as mortes de Jango, Juscelino Kubitschek e Lacerda...

Será relançado em breve. Jango era líder da esquerda, JK do centro, Lacerda da direita. Juntos, tinham 100% do eleitorado. Três adversários da ditadura morrem entre 1976 e 1977, em circunstâncias misteriosas. Naquele tempo, não havia por que duvidar de nada.

Durante a ditadura, quando foi preso, você temeu por sua integridade física?

Nunca fui torturado. Mas havia rispidez. Não liberavam banho de sol, dificultavam banho, deixavam incomunicável numa cela de 2x2, lâmpada acesa dia e noite, cano pingando água pra tomar banho. Uma vez, meu irmão mandou uma lata de fumo de cachimbo. Abriram, jogaram o fumo fora e deram a lata vazia.

TRINCHEIRA. O escritor no lançamento do livro "O ato e o fato", que reunia textos contra a ditadura Foto: Arquivo pessoal
TRINCHEIRA. O escritor no lançamento do livro "O ato e o fato", que reunia textos contra a ditadura Foto: Arquivo pessoal

Como foi quando invadiram sua casa?

Foi depois que eu fiz uma crônica prevendo o Ato Institucional Número 2. Começava mais ou menos assim: “A partir de hoje os Estados Unidos do Brasil passam a se chamar Brasil dos Estados Unidos”. Eu morava na Raul Pompeia, entraram no apartamento. Com a baioneta, furaram todo o teto, que era rebaixado. Reviraram livros, jogaram a geladeira no pátio, bateram na cozinheira, me levaram preso.

Mesmo quando saiu do jornal, continuou sendo preso. Qual o motivo?

Fiquei marcado, tudo era motivo. Fui preso indo para a praia, com esteira e radinho de pilha. Outra prisão foi no Maracanã, num jogo do Fluminense. No final do jogo, fizeram fogueiras de jornais nas arquibancadas, juntou gente ao redor. Só eu fui preso. Num carnaval, quando mataram o (guerrilheiro Carlos) Lamarca, foram me buscar. Nem sabia do assassinato.

Em “Pessach: A travessia”, o protagonista entra na luta armada. Essa possibilidade chegou a você de alguma forma?

É um alter ego meu, parte das coisas que eu vivia na época. Pus os revolucionários numa posição muito favorável: eles tinham uma fazenda, armas, dinheiro, estavam se organizando profissionalmente, coisa que nunca existiu. Esse livro desagradou aos militares. Mas, como o dedo-duro da guerrilha era comunista, os comunas me juraram de morte. Partia da realidade: para que os Estados Unidos não se metessem no Leste Europeu, a União Soviética não podia se meter na América Latina. Mas os comunistas odiaram.

Nem todos. Porque você foi convidado para passar um ano em Cuba. Pode falar sobre essa experiência?

Em 1967, recebi um convite da Casa de las Américas, em Havana. Como estava cheio de processos, e eles pagariam tudo desde que eu aceitasse integrar o júri dos prêmios dados anualmente pela instituição cubana, aceitei o convite. Fiz uma escala em Paris, onde me deram um passaporte especial, uma vez que o passaporte brasileiro servia para todos os países, menos para Cuba. Fiquei hospedado no Hotel Habana Libre, que antes da revolução era o Habana Hilton. Durante mais de um ano tive de ler e opinar sobre dezenas de originais de romances de toda a América Latina (não havia premiação para obras em português). Outro brasileiro que fazia parte da premiação era o José Celso Martinez Corrêa. Ele ficou lendo originais de peças teatrais. Fiz relações na área intelectual. Só apertei uma única vez a mão de Fidel Castro, no final de um encontro social. Nada tinha a falar com ele, nem ele comigo. Embora tivesse tratamento VIP, fiquei horrorizado com a miséria geral e a falta generalizada de liberdade e informação. Roupas e calçados eram anunciados pelo rádio: “Hoje, estarão à venda sapatos de 35 a 40. Camisas de colarinho 32 a 38.” Mesmo assim, vi cabineiro de elevador lendo Borges e a saúde massiva, de urgência, era talvez a melhor do mundo.

Quando você voltou, para trabalhar na Editora Bloch, deixou a ficção de lado?

Estava muito ocupado na redação. Passei por vários cargos na revista “Manchete”, lancei “Ele & Ela”, inspirada na “Playboy”, mas sem o dinheiro que os americanos tinham. Eles chamavam Truman Capote, mas a gente conseguia se virar com os talentos daqui, como Ruy Castro.

TECLANDO. Cony com seu órgão, instrumento que conheceu no seminário e chegou a tocar na noite Foto: Ana Branco / Agência O Globo
TECLANDO. Cony com seu órgão, instrumento que conheceu no seminário e chegou a tocar na noite Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Por falar em Ruy Castro, no livro “A noite do meu bem” ele conta que você tocou piano em boate. Como você foi do seminário para a boate?

Não era boate, era inferninho mesmo, de prostituição. Ficava na Viveiros de Castro, esquina com Prado Júnior. Acho que se chamava Crepúsculo. Foi meu primeiro salário. Fui parar lá em 1946, por indicação de um ex-colega que, como eu, aprendeu a tocar órgão no seminário. Eu sabia música sacra, clássica, mas tirava o repertório popular de ouvido. Tocava sucessos da época, “Hindustan”, “Speak low”, “As time goes by”. E o pessoal gostava. Havia também um baixista, um baterista, a gente ia das 20h até o sol nascer. Minha mãe era contra, tinha criado o filho para ser padre. Aí meu pai me arranjou um trabalho de jornalista.

Nunca mais pensou em ser padre?

No final do seminário eu comecei a questionar a existência de Deus — essas dúvidas pus em “Informação ao crucificado” (1961). Depois, tive certeza: Deus não existe. Não posso pregar algo em que não acredito. Sou devoto de Santo Antônio. Não há coisa melhor para uma gaveta emperrada do que invocar Santo Antônio. Mas a fé não voltou mais.

Aos 90 anos, você faz planos?

Eu só tenho dois caminhos, né? Um é morrer, o outro é ganhar o Nobel. Como não vou ganhar o Nobel...

Você pensa muito na morte?

Hoje, sim. Em 2013, levei um tombo, fiz exames,acharam um coágulo no meu cérebro. O tratamento deixou sequelas: fui pra cadeira de rodas, o lado direito perdeu movimento. Quando dou autógrafo, minha mulher faz a dedicatória. Só o “Cony” consigo fazer direito, igual ao do meu pai.

Há perspectiva de melhora?

Já me garantiram que, com drenagem linfática, vou melhorar e, até o fim do ano, fico livre da cadeira. Quero voltar a escrever romances. Tenho dois prontos na cabeça, com títulos: “Missa para o papa Marcelo” e “Cinco prudentes virgens”. E poderei voltar à ABL.

IMORTAL. Ana Maria Braga entrevista Carlos Heitor Cony antes de sua posse na ABL ( Academia Brasileira de Letras ) Foto: Agência O Globo / Carlos Ivan
IMORTAL. Ana Maria Braga entrevista Carlos Heitor Cony antes de sua posse na ABL ( Academia Brasileira de Letras ) Foto: Agência O Globo / Carlos Ivan

Por que “poderei voltar”?

Não sei se você sabe, mas na ABL você não pode tossir. Nem fungar. Se não, vem gente perguntar da sua saúde, ligam para saber se você está bem. Todos, claro, de olho na sua vaga, há uma fila de candidatos. Quando não se está muito bem, melhor ficar fora. (Risos.)

Revendo sua trajetória, algum arrependimento?

(Pensa, traga o charuto.) Anos atrás, no Nordeste, vi à venda uma camiseta preta com uma palavra em cinza, só dava para ler de perto: “Foda-se”. Me arrependo de não ter comprado a tal camiseta. Seria ótima para meu aniversário de 90 anos.