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Carola Saavedra evoca sofrimento e força feminina em novo livro

Em 'Com armas sonolentas: um romance de formação', escritora articula histórias protagonizadas por três mulheres
A escritora Carola Saavedra Foto: Divulgação
A escritora Carola Saavedra Foto: Divulgação

RIO — Com jogos de armar e de amor, a ficção de Carola Saavedra se reinventa a cada vez, na trama e estrutura narrativa. “Com armas sonolentas: um romance de formação” não foge à regra. Já no título, a imagem poética e difusa se choca com o enquadramento da obra ao gênero Bildungsroman. Resulta daí uma proposta de leitura que opere à moda de Moebus, figura recorrente na obra da autora: a colagem de duas extremidades de uma fita, após dar meia volta numa delas, subverte a representação bilateral do espaço, criando uma terceira dimensão. É este imaginário que se sugere percorrer.

O livro acompanha três mulheres. A promissora atriz carioca vai morar com o cineasta alemão famoso, após conhecê-lo num festival no Rio; isolada em pequena cidade da Alemanha, nutre-se de frustrações. A estudante alemã passa por transformações radicais, com súbito interesse pelo Brasil, descoberta do amor e desejo homossexual. A jovem mineira anônima migra para a Cidade Maravilhosa, para ser doméstica: podemos chamá-la de Macabéa, personagem clariceano evocado a certa altura.

As histórias revelam nexos entre si. Para entender o motor dessas vidas cruzadas, sem perder a surpresa, sugiro seguir as armas, lá do título. Em latim, armas são instrumentos de defesa e ataque, e encaixes. Será com armas reais (faca, revólver) e simbólicas (autoritarismo ou dinheiro), e será na arena da sobrevivência, que cada personagem confronta uma engrenagem perversa. Em conjunto, evocam seculares gerações de mulheres com laços camuflados, mas à espreita. Angústia e perda extravasam sofrimento físico, espiritual e psíquico. Mas também coragem, autodescoberta e solidariedade definem a mudança.

Libertos, os demônios da truculência que vitimam a mulher expõem o cinismo da burguesia que humilha e expropria com falso amor cristão e discurso civilizatório. Emergem criaturas à margem por estupro, parto indesejado, preconceito contra pobre, gay e índia. É acionado o lado obscuro do passado colonial, evocando a artista Adriana Varejão. A herança patriarcal começa, mas não finda em Minas. A matriz se revigora com falsas promessas: ditadura da aparência e esgarçamento de vínculos.

Se desamor e desafeto edificaram feridas, aprendizados são tirados. O esqueleto do romance de formação é revolvido com protagonistas mulheres, ausência de figura central heroica, polifonia, narrativa em abismo, saberes ancestrais e escuta respeitosa à contundência do trauma e pesadelo. Não há reconciliação com a divindade onde se grafa “deus” com minúscula. Não há aprimoramento moral se a gravidez indesejada dá à luz frases como “a coisa crescia em silêncio dentro de sua barriga”. Nesta pedagogia inexiste função edificadora. O discurso irrompe do corpo para desafiar tabu.

Sim, há guardiães da memória, alguns à beira da loucura, e todos conectados à experiência, conceito de Walter Benjamin para o saber ancestral transmitido em narrativas e cada vez mais raro, pela perda do passado em comum. Em dado momento do livro, o tomar da palavra no teatro se torna gesto testemunhal coletivo. E o livro nos lembra que na ancestralidade e para além de nós, humanos e racionais, há substância de outro peso que nos constitui, como um alerta, a pedir novas formas de interpretar.

* Clarisse Fukelman é professora da PUC-Rio

Serviço — “Com armas sonolentas”

Autora: Carola Saavedra.

Editora: Companhia das Letras.

Páginas: 272.

Preço: R$ 54,90.

Coração: Ótimo.