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Cartas, gravação e poema inéditos expõem influência mútua de Hilda Hilst e Mora Fuentes

Escritores, que viveram na Casa do Sol, tiveram rara simbiose intelectual e espiritual
Os escritores Mora Fuentes e Hilda Hilst nos anos 1990 Foto: Divulgação / Instituto Hilda Hilst
Os escritores Mora Fuentes e Hilda Hilst nos anos 1990 Foto: Divulgação / Instituto Hilda Hilst

CAMPINAS — Provocante, enigmática e incompreendida, Hilda Hilst dizia que ficava “besta” quando a entendiam. A percepção sobre a autora vem mudando desde sua morte, em 2004, com um número cada vez maior de reedições, traduções e estudos de sua obra, além do resgate de textos inéditos ou perdidos. Pelo menos três descobertas recentes jogam luz sobre um elemento ainda pouco explorado, mas essencial para a chave do mistério hilstiano: a amizade de décadas com o escritor e artista plástico espanhol Jose Luis Mora Fuentes, apelidado por ela de “Zé” e “Sapo”.

Em uma caixa encontrada na Casa do Sol, a chácara de Campinas onde Hilda se recolheu por 40 anos (muitos deles ao lado do próprio Mora), surgiu uma série de cartas trocadas entre eles de 1979 a 1990. Surgiu ainda um poema inédito, escrito pela autora, em 1988, para o filho do amigo, Daniel (hoje herdeiro da obra de Hilda). Também na casa foi encontrada uma fita cassete com um longo diálogo gravado em 1978, no qual a autora expõe a Mora seu processo criativo e fala de temas que não costumava abordar, como questões de gênero. O poema foi incluído no recém-lançado “Da poesia” (Companhia das Letras), primeira reunião completa de toda a lavra poética da escritora. A correspondência entre os dois deve sair em livro em breve.

Desenho de Hilda Hilst em carta para Mora Fuentes: a "Lacraia" feliz pelo novo rim do "Sapo" Foto: Bolívar Torres / Agência O GLOBO
Desenho de Hilda Hilst em carta para Mora Fuentes: a "Lacraia" feliz pelo novo rim do "Sapo" Foto: Bolívar Torres / Agência O GLOBO

Mais do que uma amizade intensa e uma história de amor (eles tiveram um curto caso logo que se conheceram, em 1968), a relação dos dois é um exemplo raro de simbiose artística e espiritual na literatura brasileira. Para amigos e pesquisadores que os acompanharam de perto, a influência de Mora na escrita de Hilda é marcante — e vice-versa. Apesar de ser 20 anos mais novo do que a autora e de ter deixado uma obra muito menos conhecida, ele é visto hoje não como um discípulo, mas como um interlocutor.

— Eles eram como duplos — diz Leusa Araújo, jornalista e amiga dos dois autores, que assina a orelha de “Da poesia”. — Dos muitos jovens que frequentaram a Casa do Sol, como o Caio F., o Zé foi o que teve a relação mais próxima com Hilda. Tanto que acabou ficando por lá e morando com ela. Há coisas da Hilda que eu leio e penso “isso é muito Zé”. O humor, o jeito de ver algumas coisas... Por exemplo, quando ela diz “fico besta”. Isso era uma expressão que o Zé falava, e que ela incorporou. Mora foi a primeira pessoa que, ao ler a prosa de Hilda, ria sempre no momento certo.

Quando Hilda conheceu Mora, ele era um jovem aspirante a escritor, sem nada publicado. Estava no fim do namoro com a artista plástica Olga Bilenky, então com 17 anos. Hoje, aos 66 anos, ela lembra o dia em que descobriu o romance dos dois:

— Cheguei ao apartamento dele e achei uma calcinha preta, enorme, em cima da cama. Pensei “essa calcinha não é minha”. Fui atrás do Zé e o encontrei num lugar a que costumávamos ir, com a Hilda. Aí soube do caso dos dois, esse caso maravilhoso. Ela estava muito apaixonada por ele.

A paixão, porém, durou pouco. Transformou-se numa amizade “passional”, como define Leusa. Depois de alguns anos de idas e vindas na Casa do Sol, Mora mudou-se definitivamente para a chácara a convite de Hilda, em 1976. Lá, começou a construir o — ainda hoje — belo jardim da residência, enquanto trocava ideias com a amiga. Um ano antes, ele havia publicado seu primeiro livro, “O cordeiro da casa” — uma elogiada reunião de contos intimistas com forte entonação poética.

Na Casa do Sol, ele passou a se corresponder com Clarice Lispector, com quem teve uma relação platônica. Nas cartas, hoje guardadas no acervo do Instituto Hilda Hilst, Clarice, já no fim da vida, parece uma adolescente ansiosa e apaixonada, sempre cobrando respostas rápidas de um interlocutor muito mais jovem que ela. “Quem é você? Você é deste mundo? É palpável? É monge?”, escreve. Ou ainda: “Você é casado? Que idade você tem? Eu tenho setecentos anos e às vezes sequer ainda nasci”.

A relação não se consumou, mas rendeu uma carta notável, de oito páginas, em que Mora começa escrevendo para Clarice e, depois, muda repentinamente para Hilda, que ele chamava carinhosamente de Lacraia. “Te amo de um jeito fundo, eterno e forte”, escreve à amiga mais antiga, talvez se sentindo culpado pela “traição”.

— Zé foi o homem das grandes mulheres, Hilda, Clarice e eu — brinca Olga, que mais tarde retomaria o namoro com Mora, se tornaria sua companheira e passaria a viver com ele (e Hilda) na Casa do Sol, onde mora até hoje.

Ela afirma, no entanto, que o companheiro nunca foi sombra de ninguém:

— Ele chegou à Casa do Sol já escritor, mas começou a viver com uma mulher que tinha uma literatura extraordinária, então você via a voz da Hilda no texto dele. Lembro do Zé lendo e a Hilda dizendo “aí sou eu, aí não sou”. Aos poucos, ele conseguiu se enxugar dela e encontrar a própria voz. Era um grande escritor, e só não conseguiu ficar do tamanho da Hilda por causa dos problemas de saúde.

Com um quadro de insuficiência renal crônica desde jovem, Mora foi internado diversas vezes e chegou a fazer dois transplantes — o primeiro deles pago por Hilda. Em uma das cartas, ela escreve, no seu estilo reconhecível: “Lindo foi saber que o teu rim está belíssimo aí, cravado, adorei saber as dimensões dele, assim posso mentalizá-lo melhor, e que ele está adorando a nova linda cálida doce casa dele, corpo amor do sapo”.

Porém, não teria sido apenas a doença que prejudicou a carreira literária de Mora. Leusa lembra que ele também teve o azar de pegar a “pobreza editorial” das décadas de 1980 e 1990. Após a estreia impactante, publicou apenas mais três livros, nunca relançados: “Fábula de um rumo” (contos, 1985) “A ilha vazia” (infantil, 1999), “Sol no quarto principal” (novela, 1999). Sempre esperando por resposta de editoras, deixou pilhas de inéditos ao morrer, em 2009, à espera de um terceiro transplante. São contos, roteiros e novelas. Um desses textos, o conto “Deus” ( leia aqui ), mostra a convergência dos dois autores numa visão mais desencantada da força divina, acredita Leusa.

— Em seus primeiros livros de poesia, o Deus de Hilda está mais ligado a uma utopia da imortalidade — analisa a jornalista. — Mais tarde, na velhice, ela começa a se aproximar da visão de Mora, mais niilista. Não diria que ele influenciou essa visão dela, mas sim que os dois foram ficando mais próximos.

Leusa lembra outros elementos em comum entre os autores, como a “figura do carrasco” e o gosto pelas “coisas obscuras”. Já em “Sol no quarto principal”, vê uma comunicação com a pontuação e o ritmo de fluxo de Hilda. A novela de Mora, aliás, é muito citada em “Estar sendo, ter sido” (1997), uma espécie de testamento literário da autora, que funciona quase como um diálogo entre os dois. “Dou um grande suspiro. que viagem! e o Mora Fuentes ainda aqui ao lado: Sol no quarto principal. é noite aqui”, escreve ela.

Em um canto do jardim da chácara, Hilda costumava ler em voz alta as obras em que estava trabalhando. Mora a ouvia e fazia comentários, enquanto jardinava. “Estar sendo, ter sido” foi todo construído em cima dessa interação, lembra Olga.

— É o livro em que a troca aconteceu linha a linha — conta. — De certa forma, os dois sempre se complementaram, o que cada um fazia o outro lia. Você via os dois juntos, via uma harmonização.