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Cartas imaginárias de Françoise Ega para Carolina Maria de Jesus expõem a realidade dura de duas autoras negras

A literatura da martinicana e da brasileira denunciam as condições em lugares diferentes como Paris e São Paulo
Carolina Maria de Jesus Foto: Arquivo
Carolina Maria de Jesus Foto: Arquivo

RIO - “Aqui não é nem o barraco, nem a favela, mas o pardieiro e a esperança que nunca abandonam os infelizes”. Quem escreveu estas linhas foi uma mulher negra, jovem, pobre, mãe de cinco filhos, que trabalhou duramente anos a fio em casas de famílias. Mas na França dos anos 1960-70. Qualquer semelhança com a escritora mineira Carolina Maria de Jesus (1914-1977), a festejada autora de “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, não é mera coincidência. Aliás, coincidências e similitudes estão presentes na história de vida e nas obras dessas duas mulheres.

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Estas passagens aqui mencionadas fazem parte de um interessante livro, escrito por Françoise Ega, autora de origem antilhana, nascida na ilha da Martinica, que teve uma vida sofrida como a de Carolina, para quem escreveu cartas imaginárias que nunca chegaram às mãos e jamais foram lidas pela antiga moradora da favela do Canindé, em São Paulo. Com o sugestivo título “Cartas a uma negra: narrativa antilhana”, o relato confessional de Ega chega agora numa bela publicação.

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Assim como Carolina, que saiu de Sacramento, interior de Minas Gerais, Françoise Ega migrou cedo para a França, no período da Segunda Guerra. Aportou em Paris, onde se casou. O marido, com quem foi morar em Marselha e teve cinco filhos, era um militar que ignorava a sua escrita, chegando a esconder dela canetas e cadernos de anotações. Tempos depois, reconhecendo seu talento, mudou de tom e chegou a tratá-la por “minha escritora”.

Françoise Ega, que teve forte ativismo social no entorno da comunidade antilhana, não viveu o auge de sua produção literária. Conseguiu publicar apenas um único livro, “Le temps de Madras” (“Os tempos de Madras”, em tradução literal), ainda não editado no Brasil. O grosso de sua obra só foi resgatado após a sua morte, ocorrida em março de 1976, com a ajuda dos filhos e do Comitê Mam’Ega, que editou ainda “L’Alizé ne souflait plus”.

A aventura narrativa de Ega como escritora, contada em “Cartas a uma negra”, começa em maio de 1962 quando, num ônibus a caminho do trabalho, onde era faxineira, teve contato com Carolina por meio de uma reportagem publicada na revista Paris Match. Os textos e as fotos em destaque na publicação chamaram a atenção de Ega. A matéria falava de uma mulher pobre, negra, catadora de papel do lixo, base para escrever seu “Quarto de despejo”, batizado com o nome de “Le Dépotoir”, ou seja, “O depósito”, que acabava de receber uma versão em francês. De chofre, o luxo e o lixo estavam presentes nas páginas de tão importante revista, e Ega voltou para casa disposta a contatar a escritora brasileira. O melhor caminho encontrado por ela foi o da escrita.

Liberdade nos escritos

A leitura e a literatura — em parte, a escrita — serviram de suporte de inspiração e afinidade entre as duas. As cartas de Ega são, na verdade, um bom despiste — de sua realidade de doméstica, do universo do subemprego, e do sistema opressor em que então vivia. Por meio de seus escritos, ela encontrou toda a liberdade de se expressar, já que Carolina, confinada na fome e na favela, do outro lado do mundo, jamais a leria de fato. Esse sentido de “leitura” e “não leitura”, de “escrita” e “não escrita” é o que as conecta no universo das letras, pela potência de dizer o que quer, mas nunca como se quer dizer.

Nesse ponto, “Cartas a uma negra” remete Ega a um retrato sem retoques sobre a realidade de milhares de homens e mulheres negros que migraram de seus lugares de origem para a realidade nua e crua da exploração operária (no sentido da analogia à escravidão), sem direitos trabalhistas e sem o carimbo em seus passaportes da cidadania plena.

A obra, que muitas vezes, por ser lida como um romance “não ficcional”, grosso modo, invade as casas suntuosas, habitadas por patroas exigentes e racistas, e lares modestos, humildes, de gente preta, que vive da migalha relegada ao submundo que pode ser entendido como o “quarto de despejo” de lá. Em todo caso, não deixa de ser um livro apaixonante e verdadeiro, mas ao influxo daquela verdade que dói — na dor da cor e no sentido da cor.

Senti falta de uma dicção maior com a africanidade da autora, filha do Caribe, mas concordo com o ritmo do texto que dialoga com autores como Conceição Evaristo, de “Ponciá Vicenço”, e a cubana Teresa Cárdenas, de “Cartas para a minha mãe”. O tom confessional, âmago da “escrevivência” de cada uma delas, incluindo Ega e a própria Carolina, dão ao conjunto dessas obras uma unicidade que as entrelaça e as humaniza nos seus discursos literários.

Como se elas, cada qual a seu modo, sentisse uma a outra por meio das leituras dos “livros resumidos” (no caso de Ega) ou contatos do lixo (no caso de Carolina). Em “Cartas a uma negra” e “Quarto de despejo” as similaridades são fortes e profundas. Para nós, que conhecemos Ega agora, nessa ilusória “correspondência”, fica a impressão da potencialidade de uma escrita, que grita por justiça e contra um novo sufocamento, que é o ódio racial direcionado, ainda hoje, à literatura de mulheres negras.

Tom Farias é jornalista e escritor