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Cartas inéditas retratam amizade entre Manuel Bandeira e Gilberto Freyre

Reunida no livro "Cartas da província", correspondência aponta convergências entre poeta e ensaísta
Ao longo de mais de 40 anos de diálogo cordial, Bandeira (à dir.) e Freyre trocaram ideias sobre a experiência modernizadora do Brasil Foto: Arquivo / Agência O GLOBO
Ao longo de mais de 40 anos de diálogo cordial, Bandeira (à dir.) e Freyre trocaram ideias sobre a experiência modernizadora do Brasil Foto: Arquivo / Agência O GLOBO

RIO — Amigos de longa data, Manuel Bandeira e Gilberto Freyre nasceram no Recife, foram figuras importantes para o Modernismo no Brasil, e viveram parte da vida afastados de sua terra natal. As afinidades e convergências entre o poeta e o ensaísta — mas também alguns dissensos — estão reforçadas em uma correspondência de mais de 40 anos, em sua maior parte inédita. Reunidas pela primeira vez no recém-lançado “Cartas provincianas”, da pesquisadora Silvana Moreli Vicente Dias, as 68 cartas, bilhetes, postais e telegramas trocados pelos dois autores são atravessados por dois elementos: a tensão entre província e metrópole, e a representação do Recife como um espaço de sociabilidade e resistência.

Em seus diálogos, tanto Bandeira (radicado no Rio, então capital federal) quanto Freyre (com residência fixada no Recife, mas atormentado pela nostalgia a cada uma de suas mudanças circunstanciais para Europa, Rio e Estados Unidos), tinham na capital pernambucana e na sua vivência provinciana uma via de mão dupla: lugar ao mesmo tempo de permanência e de deslocamento, que dialoga com o cosmopolitismo ao mesmo tempo em que o supera. As dualidades da “província”, entretanto, não dominam apenas as missivas, mas aparecem de forma explícita em suas produções literárias como um todo, acredita Silvana, que no livro também analisa outros materiais relacionados à correspondência nunca publicados antes, como fotografias, dedicatórias e autógrafos, além de crônicas e artigos de jornal.

— Num primeiro momento, a “província” parece apenas ressaltar um valor biográfico, um apego ao lugar de origem de ambos, o Recife, e à sociabilidade daquele espaço — diz a pesquisadora. — Ao fim, revela-se um elemento definidor de uma relação complexa com a produção literária e intelectual, o patrimônio e a história, um elo, um amálgama que une a memória pessoal e coletiva. Colocam-se em relação elementos díspares como a tradição e a modernização; os complexos rurais e urbanos; o público e o privado. Como eles sempre queriam diagnosticar, apontar problemas e soluções para o Brasil, o que há de provinciano neles encontra-se com o interesse crescente sobre o nacional.

Carta de Manuel Bandeira, o Flag, para Gilberto Freyre Foto: Divulgação / Agência O GLOBO
Carta de Manuel Bandeira, o Flag, para Gilberto Freyre Foto: Divulgação / Agência O GLOBO

A convivência por carta entre os dois se inicia nos anos 1920 e vai até meados dos anos 1960. Entre 1928 e 1930, Bandeira colaborou no jornal “A Província” do Recife, na época dirigido por Freyre. O poeta afirmava, inclusive, que foi nas páginas da publicação que pegou “este jeito provinciano de conversar”, mais coloquial (até então falava num “carioca federativo”, como dizia). Na correspondência, isso ecoa nas conversas em tom bastante cordial, atento às miudezas da vida íntima (Freyre, que se autodenominava “Magro”, chamava o amigo de “Flag” ou “Baby Flag”, apelido que pegou até entre a sua família). Segundo Silvana, aliás, é a partir da aproximação com o amigo ensaísta e de seus convites para sentir a dinâmica cotidiana que Bandeira se consolida como um autor atento à presença dos excluídos e da herança africana na cultura e na língua popular brasileira.

— Em termos formais, os valores provincianos revelam-se na abertura para agregar às diferentes classes sociais o elemento popular, o coloquial, o ritmo da conversa despropositada e solta, o apego a detalhes aparentemente sem importância como os rituais cotidianos de uma refeição, uma conversa entre amigos e até a relação erótica com a mulher brasileira — analisa a pesquisadora.

BAUNILHA DE MULATA ASSEADA

A correspondência também joga luz sobre a produção poética de Gilberto Freyre, menos conhecida do que a ensaística. Foi Bandeira quem intermediou o contato do amigo com os modernistas do centro do país e ofereceu a ele o seu primeiro reconhecimento maior como poeta, ao convidá-lo para integrar a sua “Antologia de poetas bissextos contemporâneos”, de 1946. O poema escolhido foi “Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados”, escrito 20 anos antes, e que havia impressionado Baby Flag por sua pulsação erótica. “Teu poema, Gilberto, será a minha eterna dor de corno”, escreve ele em uma carta, depois de ler os versos pela primeira vez, em 1927. “Não posso me conformar com aquela galinhagem tão dosada, tão senvergonhamente lírica, trescalando a baunilha de mulata asseada”.

— Na época, o erotismo ainda não estava no horizonte das conquistas poéticas de Bandeira — lembra Silvana. — Assim, pode ter sido realmente surpreendente a perspectiva que se abria ao ler um poema que colocava em relação elementos aparentemente tão díspares quanto comidas, igrejas coloniais, mulheres, ruas da cidade, cheiros e temperos dessa “maternal cidade gorda”. Que seria Salvador, com sensações díspares evocadas sensorialmente, construindo uma espécie de correlativo objetivo da emoção.

Fotografia enviada por Manuel Bandeira a Gilberto Freyre. Na imagem, da esq. a dir., João Condé, Bandeira, Lia Correia Dutra e Astrojildo Pereira, em almoço em homenagem a Pablo Neruda Foto: Centro de Documentação da Fundação Gilberto Freyre / Divulgação
Fotografia enviada por Manuel Bandeira a Gilberto Freyre. Na imagem, da esq. a dir., João Condé, Bandeira, Lia Correia Dutra e Astrojildo Pereira, em almoço em homenagem a Pablo Neruda Foto: Centro de Documentação da Fundação Gilberto Freyre / Divulgação

Investigando o material desde 2001, Silvana se surpreendeu com a linguagem solta de amarras das cartas, nas quais brilham “a riqueza de sugestões de sentido” de Freyre e a “prosa epistolar envolvente” de Bandeira. Nas quatro décadas de diálogos entre os dois autores, há também referências saborosas a figuras históricas como Jayme Ovalle, Cícero Dias, Prudente de Morais Neto e um jovem Sérgio Buarque de Holanda, entre tantas outras, sempre envolvidos em pequenas narrativas, às vezes irônicas, às vezes sentimentais. Outro ponto forte é a maneira como as cartas desenham uma espécie de gênese de obras fundamentais, como o seminal “Casa-grande & senzala”, de Freyre, e alguns poemas de Bandeira.

— A percepção do processo de criação de obras fundamentais do modernismo brasileiro se enriquece ao nos depararmos com versões de um poema (quando Bandeira comenta seu “Evocação do Recife”) ou ainda com uma carta desenhada por Bandeira, quando este elabora um panorama muito sugestivo visto da janela de seu apartamento, paisagem definida por ele como uma “feijoada completa” em carta com datação “Rio de Janeiro, 26 de outubro de 1953” — lembra Silvana.

Segundo a pesquisadora, o papel de Freyre no Modernismo é frequentemente “jogado para debaixo do tapete”. As trocas entre os escritores fazem um balanço da experiência modernizadora do país. Nesse sentido, os valores provincianos explorados poderiam ser vistos como base de um projeto nacional alternativo.

— Se pensarmos a carta como o espaço da pluralidade, essa forma literária abre então lugar para a permeabilidade dos discursos que destacam as incongruências das representações ocidentais que não coadunavam com a experiência paradoxal brasileira, com sua herança escravocrata, com suas profundas diferenças sociais e sua tendência ao autoritarismo — avalia Silvana. — Nesse sentido, é necessário não só um exercício de descanonizar ideias consolidadas sobre o Modernismo no Brasil, até como esforço de compreender a modernização brasileira como um processo de múltiplas direções, para além de grandes figuras como Mário e Oswald de Andrade, que residiam no centro econômico do país.

“Cartas provincianas — Correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira”

Autora: Silvana Moreli Vicente Dias (org. e notas)

Editora Global

Páginas: 472

Preço: R$ 69