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Centenário de Nicanor Parra terá exposição, biografia visual e livro inédito

Escritor lança poema sobre enchentes em Santiago, escrito nos anos 1980

O poeta chileno Nicanor Parra, em foto incluída na exposição “Parra 100” e no livro “Parra à vista”
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Divulgação/ARQUIVO NICANOR PARRA
O poeta chileno Nicanor Parra, em foto incluída na exposição “Parra 100” e no livro “Parra à vista” Foto: / Divulgação/ARQUIVO NICANOR PARRA

SANTIAGO E LAS CRUCES (CHILE) - Meses depois do terremoto que atingiu o Chile em 2010, Cristóbal Ugarte, neto de Nicanor Parra, de 21 anos, estava arrumando a casa onde o antipoeta morou por muito tempo, em Santiago, quando encontrou uma maleta enferrujada. Nela havia mais de mil fotografias guardadas por Parra ao longo da vida: imagens de seus pais e avós, dos irmãos, das mulheres que amou e dos filhos, retratos com colegas escritores e registros de suas viagens pelo mundo, além de passaportes antigos e recortes de jornal. Intuindo a importância do achado, Cristóbal levou a maleta para a editora Sofía Le Foulon. Submetido a um minucioso processo de edição, que conta com a colaboração do escritor, esse material virá a publico em agosto, na exposição “Parra 100”, em Santiago, e na biografia visual “Parra à vista” (Aifos Edições).

Exposição e biografia serão o ponto alto das homenagens pelo centenário de Parra, que movimentam a cena literária chilena desde o início do ano. Além de eventos em Las Cruces, onde ele vive, e San Fabián de Alico, sua cidade natal, está em cartaz atualmente em Santiago a exposição “Antiprofessor”, na biblioteca que leva o nome do escritor, na Universidade Diego Portales (UDP). A mostra reúne registros das últimas aulas de Parra na Universidade do Chile, em 1993, feitos pelo fotógrafo Marcelo Porta. As celebrações se completam com o lançamento, anunciado há poucos dias, de uma obra inédita, “Temporal”, escrita nos anos 1980, e de uma edição comemorativa pelos 60 anos de “Poemas e antipoemas”, livro-chave em sua carreira.


Maleta com fotografias e documentos de Nicanor Parra, que serão usados em exposição e livro
Foto: El Mercurio
Maleta com fotografias e documentos de Nicanor Parra, que serão usados em exposição e livro Foto: El Mercurio

Com inauguração prevista para 19 de agosto, pouco antes do aniversário do autor, em 5 de setembro, a exposição “Parra 100” ocupará o Centro Cultural Gabriela Mistral (GAM), em Santiago. Será um percurso pela vida do antipoeta, organizado cronologicamente. As imagens serão acompanhadas por raras entrevistas em vídeo e por áudios em que o autor recita alguns de seus poemas mais notórios, como “Há um dia feliz”, “Defesa de Violeta Parra” e “Solilóquio do indivíduo”.

— A ideia é mostrar as várias personalidades que coexistem num homem só. O visitante vai armando aos poucos o quebra-cabeças Nicanor Parra — diz Sofía Le Foulon, diretora da exposição “Parra 100” e editora do livro “Parra à vista”.

Sofía também vem fazendo esse percurso pela vida de Parra, guiada pelo escritor. Desde meados do ano passado, ela vai a Las Cruces toda semana para conversar sobre as fotos da maleta.

— Nicanor diz que o processo de revisar as fotos o rejuvenesce. Lembra de tudo: nomes de colegas de infância, professores, até o número das casas onde morou. É ele quem tira nossas dúvidas sobre a ordem cronológica — diz Sofía.

FOTOBIOGRAFIA TERÁ 220 IMAGENS

Publicado com apoio do governo chileno, para ser distribuído a bibliotecas e outras instituições, “Parra à vista” terá 220 imagens: 160 da maleta e 60 reunidas numa pesquisa iconográfica. De fotos de infância ao retrato mais recente de Parra, feito por Cristóbal em 2012, o livro traz raridades. Uma delas é a foto de Ana María Molinare, com quem o escritor teve um relacionamento breve e intenso, e que cometeu suicídio anos depois da separação. Ela inspirou o poema “O homem imaginário”.

A fotobiografia será dividida em seis capítulos, correspondentes a fases da vida do escritor: a infância pobre; os estudos em Oxford, quando escreve os primeiros antipoemas; a consagração e as viagens pelo mundo nos anos 1950 e 60; a conturbada década de 1970, quando é atacado por esquerda e direita em seu país; os anos 1980, quando abraça a causa ecológica; e o retiro em Las Cruces nos últimos 20 anos.

Organizadora do livro “Assim falou Parra ao Mercurio”, coletânea de entrevistas concedidas pelo escritor ao jornal chileno ao longo de quatro décadas, a jornalista Maria Teresa Cárdenas assina os textos da fotobiografia e da exposição. Ela diz que ambas oferecem uma perspectiva ampla da trajetória de Parra, iluminando sua postura singular nos grandes debates públicos da segunda metade do século XX no Chile:

— Nos anos 1970, as declarações políticas irreverentes de Parra eram mal vistas pela intelectualidade chilena. Como ele não se definia publicamente, acabava acusado de muita coisa. Nos anos 1980, vai afinando um discurso ecológico, por meio do qual critica capitalismo e socialismo pela falta de consciência ambiental. E assim se põe muito atual — diz Maria Teresa.


Nicanor Parra com dois de seus filhos, Juan de Dios e Colombina, em 1974
Foto: Divulgação/Arquivo Nicanor Parra
Nicanor Parra com dois de seus filhos, Juan de Dios e Colombina, em 1974 Foto: Divulgação/Arquivo Nicanor Parra

A exposição “Antiprofessor”, na Biblioteca Nicanor Parra da UDP, flagra essa transição. Aluno de Parra na Universidade do Chile em 1988, o fotógrafo chileno Marcelo Porta voltou à sala de aula cinco anos depois para registrar seus últimos dias de trabalho. As imagens e documentos (como programas de curso e cadernos) reunidos na mostra indicam a preocupação crescente do antipoeta com a ecologia. Uma foto revela um poema no quadro-negro: “já não somos surrealistas/ somos dadaístas engajados/ em todos os sentidos da palavra/ na sobrevivência do planeta/ fim à balela da arte pela arte”.

— Parra compartilhava generosamente com os alunos suas inquietudes como poeta. Misturava literatura, física, matemática, filosofia e uma grande consciência ecológica — diz Porta.

Essa consciência se manifesta no longo poema “Temporal”, escrito em 1987, quando Santiago sofreu com graves enchentes causadas pelo transbordamento do rio Mapocho, que corta a cidade. No fim de maio, a Edições UDP, casa de várias obras de Parra, anunciou que o texto, inédito, sairá em livro nos próximos meses, mas ainda não revelou mais detalhes. A mesma editora publica em breve uma edição especial do clássico “Poemas e antipoemas”, lançado em 1954.

“INÉDITOS DE PARRA ENCHEM QUARTOS”

Organizador de “Obras completas e algo mais”, publicada em dois volumes pela editora Galáxia Gutemberg, o crítico espanhol Ignacio Echevarría diz que “Temporal” é apenas um dos muitos inéditos que o antipoeta guarda em Las Cruces.

— Os inéditos de Parra enchem quartos inteiros — diz Echevarría. — É uma obra aberta, sempre em movimento, sujeita a infinitos matizes e mudanças.

Também organizador de obras póstumas do chileno Roberto Bolaño, como o romance “2666” e a coletânea de ensaios “Entre parênteses”, Echevarría conta que o escritor foi decisivo para a publicação de “Obras completas e algo mais”. Bolaño era fã de Parra e o citava com frequência em textos e entrevistas. Depois de fazerem juntos uma visita a Las Cruces, em 1999, o autor de “Os detetives selvagens” insistiu com o crítico que o antipoeta merecia uma retrospectiva de seu trabalho. A princípio relutante, Parra só aceitou ir em frente depois da morte de Bolaño, em 2003.

— Foi de certa forma uma homenagem de Parra ao esforço de Bolaño — diz Echevarría, testemunha de um dos poucos encontros entre eles. — A influência de Parra sobre Bolaño foi grande e decisiva. E graças a Bolaño tivemos uma emergência da antipoesia no século XX, que culminou com o Prêmio Cervantes para Parra. Mas eles se viram só duas ou três vezes. Existia entre os dois o cimento de uma amizade construída sobre o papel, entre leitores.

Também leitor de Parra, o escritor chileno Alejandro Zambra, autor de “Formas de voltar para casa” (recém-lançado pela Cosac Naify), trabalhou com o poeta na edição de sua versão de Shakespeare, “Lear, Rei e Mendigo”, publicada em 2004 pela UDP. Parra prepara há anos o seu “Hamlet”, sem dar pistas de quando pretende publicá-lo. Zambra ficou impressionado com a habilidade do antipoeta em “captar todos os níveis de fala que existem” na obra de Shakespeare, diz.

Algo parecido chama a atenção de Zambra na antipoesia. No “desejo de que a literatura esteja na rua”, ele enxerga a característica que mantém atual a obra de Parra:

— Por causa dele, a ideia de poesia que temos hoje no Chile inclui a antipoesia. Parra mostrou muito cedo os vícios da poesia solene, de salão, desconectada da fala e da realidade. É uma obra que continua a incomodar. Muita gente ainda diz “isso não é poesia”. Os textos de Parra mantêm sua capacidade de subversão.