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Chinesa que cresceu nos EUA, Jenny Zhang cria ficção sobre os dilemas de viver entre dois mundos

'Coração azedo' retrata experiência da imigração em relato celebrado por veículos como a 'New yorker' e a 'Esquire'
A escritora sino-americana Jenny Zhang Foto: Arquivo pessoal / Divulgação
A escritora sino-americana Jenny Zhang Foto: Arquivo pessoal / Divulgação

SÃO PAULO — Quando era criança, na Nova York dos anos 90, a escritora sino-americana Jenny Zhang não podia contar a ninguém que seus pais, imigrantes sobrecarregados, trabalhavam até tarde da noite enquanto ela passava o dia todo sozinha em casa. Se alguém os denunciasse por negligência, ela podia acabar num abrigo. Zhang, que nasceu em Xangai em 1983, e migrou para os EUA aos 5 anos de idade, brinca que era quase uma agente secreta infantil:

— Eu tinha duas identidades e precisava mantê-las vivas e separadas ao mesmo tempo. Devia ser perspicaz para saber quando minha origem chinesa era vista como exótica e charmosa e quando me tornava totalmente estrangeira. Era como um segredo que gerava sofrimento e vergonha, mas também orgulho, porque me fazia parte de um clube especial, que não aceitava novos membros.

Capa do livro "Coração azedo", de Jenny Zhang (Companhia das Letras, 336 páginas, R$ 64,90) Foto: Divulgação
Capa do livro "Coração azedo", de Jenny Zhang (Companhia das Letras, 336 páginas, R$ 64,90) Foto: Divulgação

Zhang, poeta e ensaísta de algum sucesso, transformou essa relação ambígua com suas raízes em ficção. “Coração azedo”, o livro de contos que ela lançou no ano passado, foi recebido com entusiasmo pela crítica. Publicações como as revistas americanas “New Yorker” e “Esquire” e o jornal britânico “Guardian” incluíram o livro entre os melhores de 2017. “Coração azedo” ainda arrematou o Robert W. Bingham Prize, concedido pela PEN, a associação mundial dos poetas, romancistas e ensaístas.

O livro traz sete contos sobre meninas que vivem numa espécie de limbo cultural: ora são muito chinesas, ora muito americanas. Todas são filhas de trabalhadores imigrantes e pouco veem os pais. Crescem mais ou menos sozinhas e culpam-se por não conseguirem retribuir o esforço dos adultos que se sacrificam por elas.

Os contos são narrados numa linguagem dura, às vezes agressiva e vulgar. Alguns personagens passeiam por mais de um texto, e todos, em um momento ou outro, moraram no mesmo apartamento decrépito apinhado de imigrantes em Nova York. Como muitos imigrantes, as personagens enfrentam apertos financeiros e racismo, mas a principal causa de sofrimento são as relações familiares.

— Eu quis explorar histórias de meninas que estão naquela idade de perda da inocência e vivem presas entre dois mundos. A cabeça dos pais segue na China, todas as memórias deles são chinesas, mas elas são meninas americanas — explica Zhang. — Os núcleos familiares são constantemente reconstruídos pela imigração: problemas financeiros separam famílias, crianças são enviadas de volta ao país de origem e só reencontram os pais anos depois, quando muito do afeito já se perdeu.

De Clarice a 'Macunaíma'

“Coração azedo” foi o primeiro livro publicado pelo selo Lenny, coordenado pela atriz e escritora Lena Dunham, criadora da série “Girls”, da HBO, que acompanha os apuros de quatro moças em Nova York. Um dia, Dunham tuitou para Zhang, disse que gostava de seus poemas e ensaios e perguntou se tinha um projeto na gaveta.

No primeiro episódio de “Girls”, a escritora aprendiz Hannah Horvath, personagem de Dunham, diz, um pouco arrogante: “Talvez eu seja a voz da minha geração”. Será que Dunham viu em Zhang a voz de uma geração?

— Não posso me ungir a voz de nada (risos) — diz a escritora. — Eu só tento escrever da maneira mais livre e desarmada possível sobre um tipo de experiência que nem sempre encontrei nos livros.

Uma das publicações em que Zhang encontrou uma descrição pungente da experiência migratória foi “A hora da estrela”, de Clarice Lispector.

— Adoro Clarice. Gosto de livros vindos de mentes borbulhantes de ideais e excentricidade. Outro livro muito importante para mim é “Macunaíma”, de Mário de Andrade. Também é sobre migração, né? Gosto de ler sobre outsiders em busca de um lar. Antes de “Macunaíma”, eu não sabia que uma escrita tão louca e profana era possível. Quero escrever assim.

Leia trecho de 'Nós te amamos Crispina'

“Mas não sabia o que meus pais sentiam a respeito daquelas mudanças tão frequentes. Chegamos a morar em quatro ou cinco lugares num intervalo de poucos meses. A mudança consistia naquilo que desse para enfiar no carro e amarrar na lataria, mas mesmo assim eu não conseguia evitar a empolgação que surgia toda vez que saíamos de um lugar, como se fosse o primeiro dia da escola e eu ainda tivesse a chance de não ser uma tonta, e como se essa chance só existisse no curto intervalo entre minha chegada na nova sala e o momento em que a professora se apresentava e passava a primeira tarefa do ano — era assim toda vez que a gente enchia o carro e começava a dirigir para a próxima casa e para a outra e a outra, e de certa forma não era tão ruim, era um lembrete de que não existe aquilo que chamam de fracasso, só existe começar de novo um milhão de vezes e mais um pouco.”