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Clarice Lispector foi fichada pela ditadura, revela nova biografia

Chamada de 'alienada' por Henfil, escritora participava de passeatas e se manifestava politicamente em suas crônicas (ainda que de forma velada); pesquisadores afirmam que o 'social' não está ausente de sua obra
Montagem sobre retrato de Clarice Lispector Foto: O Globo
Montagem sobre retrato de Clarice Lispector Foto: O Globo

Em 1971, o cartunista Henfil estreou, no jornal O Pasquim, as tirinhas do Cabôco Mamadô, espécie de coveiro que enterrava, no “Cemitério dos Mortos-Vivos”, figuras públicas que simpatizavam com a ditadura militar ou, na opinião do autor, se omitiam diante das atrocidades do regime, como Pelé, Gilberto Freyre e Elis Regina . Em 1972, sepultou Clarice Lispector , ou melhor, “Clarisse Lispector”, conforme se lia na lápide. Henfil afirmou que enterrara Clarice “porque ela se coloca dentro de uma redoma de Pequeno Príncipe, para ficar num mundo de flores e passarinhos, enquanto Cristo está sendo pregado na cruz” e chamou-a de “alienada”.

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Documentos descobertos por Teresa Montero, autora da recém-lançada biografia “À procura da própria coisa”, revelam que a ditadura não considerava Clarice alienada. A escritora foi fichada pela polícia política. Em junho de 1973, o Serviço Nacional de Informações (SNI) produziu um pequeno dossiê sobre ela composto por dois telegramas, cópias de documentos como as certidões de casamento e de desquite de Clarice,  além de cinco telexes.

Os telegramas, solicitavam os “antecedentes” e “outros dados” da escritora. Já os telexes relatam, por exemplo, a participação de Clarice em atos públicos, como a Passeata dos Cem Mil, a maior manifestação popular realizada contra a ditadura, em 26 de junho de 1968, no Rio. Após o ato, a escritora teria se reunido com religiosos, sindicalistas e artistas Colégio Santo Inácio e discursado sobre “a necessidade de união das classes contra a ditatura”. O SNI também lembrou que, em janeiro daquele ano, ela dissera, ao jornal Última Hora, que os estudantes “têm toda razão em lutar por um mundo menos podre do que este que vivemos atualmente”. E que, em junho de 1962, ela assinara um manifesto de intelectuais em apoio à política externa de San Tiago Dantas, chanceler do João Goulart, derrubado pelos militares. Clarice, cujo marido, Maury Gurgel Valente, era diplomata, fora amiga de Dantas.

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Teresa Montero, a biógrafa, não se sabe o que motivou a ditadura a fichar Clarice. Ela costumava se manifestar politicamente em sua coluna no Jornal do Brasil, às vezes de maneira oblíqua. Em janeiro de 1973, sem citar a oposição à ditadura, escreveu: “eu marcho com eles, eu me engajei”. Montero afirma que Henfil foi injusto ao acusar Clarice de “alienada”, mas contemporiza: lembra que o irmão do cartunista, o sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho — o “irmão do Henfil” cuja volta se espera na canção “O bêbado e a equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc — fora forçado ao exílio. Para Henfil, quem não denunciava a ditadura com todas as letras, apesar da censura, era omisso.

— Clarice era uma cidadã consciente, preocupada com a justiça social desde criança, quando conheceu os mocambos (moradias erguidas sobre palafitas em áreas alagadas) — diz Montero. —Clarice propõe uma reflexão sobre a vida. Se isso não é político, não sei o que é.

Montero também descobriu que a polícia política do governo Dutra também fichou Clarice, em 1950. O documento afirma que ela era casada, alguns de seus livros e que ela tinha “nacionalidade russa”. A escritora nascera na Ucrânia, durante os conflitos que se seguiram à Revolução Russa. Montero desconfia que Clarice acabou fichada por ser soviética e judia. O governo Dutra vigiou de perto os judeus comunistas. Além disso, Clarice era amiga de notórios comunistas, como Bluma Wainer, mulher do fundador do jornal  Última Hora, Samuel Wainer.

Foto inédita de Clarice Lispector (no canto, de lenço), na Passeata dos Cem Mil. Sentada no chão, ao lado do dramaturgo Dias Gomes, a escritora ouve discursos de estudantes Foto: Reprodução / Divulgação
Foto inédita de Clarice Lispector (no canto, de lenço), na Passeata dos Cem Mil. Sentada no chão, ao lado do dramaturgo Dias Gomes, a escritora ouve discursos de estudantes Foto: Reprodução / Divulgação

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Montero já havia publicado uma biografia de Clarice em 1999, “Eu sou uma pergunta”, esgotada desde 2010. No esforço de atualizá-la e relançá-la no centenário de Clarice, no ano pasad, encontrou tanto material inédito em arquivos públicos (os quais defende veementemente) que acabou escrevendo uma nova biografia. Entre os achados estão, além do dossiê preparado pelo SNI, uma entrevista desconhecida de Clarice à TVE, em 1976, e uma fotografia inédita da escritora na Passeata dos Cem Mil, em que ela aparece sentada no chão, ao lado do dramaturgo Dias Gomes. Já eram conhecidas outras duas fotos de Clarice no ato, em que ela aparece ao lado de artistas como Tônia Carrero e Paulo Autran e Odete Lara.

Em 1985, Henfil disse que se arrependia de ter  “enterrado apenas duas pessoas”: Elis Regina e Clarice. Ela comentou o ocorrido apenas uma vez, em entrevista ao Jornal das Letras. Disse que ficou “aborrecida”, “mas depois passou”. E que, se encontrasse Henfil, já sabia o que diria a ele: “Olha, quando você escrever sobre mim, Clarice não é com dois S, é com C, viu?”.

— Em vez de reclamar “como você teve coragem de fazer isso comigo?”, ela foi mais contundente: disse “meu nome não é com dois esses” como quem diz “você não me conhece” — afirma a biógrafa.

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Na crônica “Literatura e justiça”, Clarice confessa não saber e aproximar de um modo “literário” da “coisa social". Explica que seu desejo por justiça era “tão óbvio e tão básico”, que não conseguia se surpreender com ele. “E, sem me surpreender, não consigo escrever”, afirmou. “O sentimento de justiça nunca foi procura em mim, nunca chegou a ser descoberta, e o que me espanta é que ele não seja igualmente óbvio em todos”.

Num dos texto do livro "Um século de Clarice" (uma das obras sobre a escritora a ser lançadas nos próximos dias), o ensaísta José Miguel Wisnik escreve que, em "Literatura e justiça", a escritora dava uma resposta “estratégica” e “sincera” às cobranças por engajamento. No entanto, segundo Wisnik, "engana-se, pois, quem pensar Clarice como uma escritora desligada da inquietude e do fervor social”. Na obra de Clarice, o "social" aparece até em contos como "Amor", no qual uma mulher de classe média tem uma epifania após ver um mendigo mascar chiclete e sente náusea ao se lembrar de que há gente com fome.

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Para Júlio Diniz, professor da PUC-Rio e organizador do livro "Quanto ao futuro, Clarice", é absurdo chamar de alienada uma escritora que criou personagens como Macabéa, a migrante nordestina de "A hora da estrela", e Janair, a empregada doméstica negra que habitava o quartinho onde a narradora de "A paixão segundo G.H" enfrenta a barata.

— Clarice é uma intérprete do Brasil , não no sentido da tradição do pensamento social em nosso país, mas como uma observadora crítica, às vezes muito dura, e ao mesmo tempo generosa dos impasses, dilemas e conflitos da sociedade brasileira — afirma Diniz.

Danielle Ramos, professora da UFRJ recorda um dos textos mais políticos de Clarice, a crônica “Mineirinho”, de 1962, na qual expõe sua indignação diante da morte do bandido Mineirinho com 13 tiros pela policia. Segundo Ramos, Clarice denuncia a "conivência da população supostamente pacífica com políticas de extermínio".

— Não é de estranhar que, nas eleições de 2018, a extrema-direita tenha recuperado esse texto para dizendo que Clarice defendia bandido" — diz Ramos, que autora de um ensaio sobre a marginalidade na obra da escritora incluído no livro "Clarice Lispector, uma vida na literatura".

Serviços:

“À procura da própria coisa: uma biografia de Clarice Lispector”

Autora: Teresa Montero. Editora: Rocco. Páginas: 768. Preço: R$ 119,90.

“Um século de Clarice Lispector: ensaios críticos”

Organização: Yudith Rosembaum e Cleusa Rios P. Passos. Editora: Fósforo. Páginas: 416. Preço: 99,90.

“Quanto ao futuro, Clarice”

Organização: Júlio Diniz. Editora: Bazar do Tempo. Páginas: 424. Preço: R$ 72.

“Clarice Lispector: uma vida na literatura”

Organização: Matildes Demetrio dos Santos e Mônica Gomes da Silva. Editora: Oficina Raquel. Páginas: 200. Preço: R$ 70.