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Coetzee troca realismo que lhe trouxe o Nobel por metáforas

Em "A vida escolar de Jesus", sul-africano continua fábula do menino Davíd
J.M. Coetzee, autor sul-africano vencedor do Nobel de Literatura em 2003, posa para fotógrafos em Roma em 22 de junho de 2004 Foto: Tiziana Fabi / AFP Photo
J.M. Coetzee, autor sul-africano vencedor do Nobel de Literatura em 2003, posa para fotógrafos em Roma em 22 de junho de 2004 Foto: Tiziana Fabi / AFP Photo

Ao longo dos anos, estilo e tema das obras do sul-africano J. M. Coetzee foram se transformando. Ele começou experimental, em romances como “Terra de sombras” (1974) e “À espera dos bárbaros” (1980), e teve a coragem de reconstruir um período da vida de Dostoiévski em “O mestre de Petersburgo” (1994). A aclamação do público veio, no entanto, em seu livro mais realista e tradicional: “Desonra” (1999), sobre um professor universitário acusado de assédio por uma aluna. Nesse período, o vencedor do Nobel de Literatura de 2003 adotou a narrativa autobiográfica, com a trilogia de “Infância” (1997), “Juventude” (2002) e “Verão” (2009).

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“A vida escolar de Jesus”(Companhia das Letras), recém-lançada sequência de “A infância de Jesus” (2013) , pertence a uma nova fase. Enigmáticos, estes últimos dois romances deixaram a crítica internacional perplexa e confusa. Se algo os conecta com o restante da obra de Coetzee é a narração fria e distanciada, que nunca permite ao leitor ter acesso à consciência e aos sentimentos dos personagens.

A trama acompanha Davíd —criança prodígio de 6 anos que aprendeu a ler com “Dom Quixote” — e seus pais adotivos chegando à cidade de Estrella. Apesar de quase todos os nomes de pessoas e locais soarem hispânicos, é como se aquele universo existisse fora do tempo e do espaço. Ninguém se lembra como era a vida antes de imigrarem para lá, não há menções a fatos históricos. Essas figuras sem raízes ou lembranças parecem, às vezes, criaturas de Kafka, um dos heróis de Coetzee.

O enredo ganha mais foco quando Davíd é matriculado pelos pais em uma academia de dança, após teimosamente se recusar a frequentar escolas normais. Logo descobrimos que a academia é regida por uma moça estranha e bela, Ana Magdalena —outra referência bíblica — e que se propõe a invocar números do céu a partir de passos executados com paixão.

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Acompanhamos o romance colados no pai adotivo, cuja figura patriarcal é sempre mencionada com pronome: “Ele, Simón”. Simón, como o leitor, está constantemente em busca de racionalizar aquilo que não entende — desde a dança astrológica às mudanças bruscas de humor do filho.

A partir de um feminicídio na escola de dança, interpretado pelos personagens da trama como um crime passional, Coetzee põe em discussão um tema recorrente em sua obra: razão versus paixão. Simón, o patriarca, representa o Sancho Pança num mundo dominado por figuras quixotescas. Apesar de todo o hermetismo, a prosa mantém-se simples e enganosamente transparente.

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Muito se fala que, nestes dois últimos romances, Coetzee está operando em uma chave alegórica. Mas uma alegoria do quê? Jesus aparece no título, mas a trama não oferece paralelos claros com a vida de Cristo. Neste capítulo “escolar” da saga de Davíd, podemos especular que o sul-africano emula outro ídolo, o suíço Robert Walser.

Em um ensaio sobre Walser (focado em “Jakob von Gunten”, de 1909, romance no qual um menino ingressa num misterioso instituto de aprendizagem e obediência), Coetzee destaca a habilidade do autor em criar cenas desconjuntadas em narrativas sem enredo claro, com personagens nômades que parecem vindos de lugar nenhum. Em “A vida escolar de Jesus”, Coetzee tentou se aproximar do mestre. É difícil dizer se foi bem-sucedido na tarefa.

Antônio Xerxenesky é escritor, tradutor e doutorando em Teoria Literária pela USP.

Capa da edição brasileira de "A vida escolar de Jesus" (Companhia das Letras) Foto: Reprodução
Capa da edição brasileira de "A vida escolar de Jesus" (Companhia das Letras) Foto: Reprodução

“A vida escolar de Jesus”

Autor: J.M. Coetzee

Editora: Companhia das Letras

Tradução: José Rubens Siqueira

Páginas: 264

Preço: R$ 59,90

Cotação: Bom