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Com cadernos, relatórios e cartas, acervo inédito da escritora Carolina Maria de Jesus é descoberto

Material ainda desconhecido pelo grande público ficou guardado com Audálio Dantas e ajuda a explicar o abalo da amizade entre os dois
Carolina de Jesus foi uma das primeiras escritoras negras do Brasil e é considerada uma das mais importantes escritoras do país. A autora viveu boa parte de sua vida na favela do Canindé, na Zona Norte de São Paulo, sustentando a si mesma e seus três filhos como catadora de papéis. Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Carolina de Jesus foi uma das primeiras escritoras negras do Brasil e é considerada uma das mais importantes escritoras do país. A autora viveu boa parte de sua vida na favela do Canindé, na Zona Norte de São Paulo, sustentando a si mesma e seus três filhos como catadora de papéis. Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

“Audalio, o senhor acha que eu devo escrever dramas? Eu gosto de dramas e comédias. Não é melhor o senhor fazer as reportagens em capítulos, publicando os Diarios?”. O trecho acima é de uma carta inédita, de 1958, assinada por Carolina Maria de Jesus , e tirada de um conjunto de diversos documentos, a que o GLOBO teve acesso exclusivo, do arquivo particular do jornalista Audálio Dantas, morto em 2018.

Marcados pela publicação do livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada” (1960), Carolina e Audálio viveram uma curta, porém intensa, relação de amizade. O acervo de documentos ainda desconhecidos do grande público traz, além de centenas de cartas, muitas fotografias, contratos de edições, recortes de jornais, procurações, e também balancetes detalhados sobre a contabilidade financeira da venda das traduções do livro em 13 países. Há, também, o original da peça baseada no livro “Quarto de despejo”, da dramaturga Edy Lima, e o roteiro de um episódio do seriado “Caso Verdade”, da TV Globo.

Material inédito de Carolina de Jesus Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Material inédito de Carolina de Jesus Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Material inédito Carolina de Jesus Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Material inédito Carolina de Jesus Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Como grande destaque neste farto material, porém, estão três cadernos manuscritos e inéditos da autora, dois datados de 1960 e um de 1961. Confrontados, seus conteúdos não constam nos dois volumes recém-publicados pela Companhia das Letras (“Casa de alvenaria — volume 1: Osasco”, e volume 2, “Santana”), editados sob a orientação de um conselho formado por especialistas em literatura negra e na obra de Carolina de Jesus.

O aparecimento desse material sugere duas reflexões: a primeira de que há ainda uma lacuna literária em relação às recentes publicações dos diários de Carolina; e a segunda de que, pelo visto, o mundo editorial ainda há de se surpreender com novos achados da escritora. Sabe-se que Carolina escreveu muito e entregou a muita gente parte do que não conseguia publicar, na esperança de voltar a se ver em letra de forma. Clélia Pisa e Maryvonne Lapouge, responsáveis pela divulgação de Clarice Lispector na França, e que conheceram Carolina por volta de 1965, são testemunhas dessa fase: a autora de “Quarto de despejo” deu a elas os cadernos que, em edição francesa, ficariam conhecidos por “Diário de Bitita”.

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Poesia e suplício

Como peças nobres do acervo liberado pela filha de Audálio, a também jornalista Juliana Dantas, esses cadernos têm muito o que contar. Aliás, com a publicação da Companhia das Letras e a inauguração da exposição “Meu Brasil para os brasileiros”, em homenagem a Carolina, no Instituto Moreira Salles (IMS) em São Paulo , Juliana tem se pronunciado, através de sua conta no Twitter, sobre possíveis “insinuações” e “acusações graves” referentes a seu pai. Algumas são ilações de que ele teria se “aproveitado” da ingenuidade de Carolina, ou de não ter editado na íntegra seus diários e outros escritos. Mesmo sobre o material inédito, até então supunha-se que o jornalista alagoano tivesse doado tudo o que guardava em casa a respeito de Carolina à Biblioteca Nacional. Mas não.

Os dois cadernos de 1960 foram redigidos na favela do Canindé; o de 1961, quando ela já vivia no bairro de Santana. Neles, Carolina mantém o estilo que a levou ao sucesso mundial. Os dois primeiros, escritos entre 16 de fevereiro e 17 de maio, relatam seus últimos meses na favela ; no seguinte, de 30 de agosto a 27 de outubro, fala da vida na “sala de visitas”. Os três somam mais 500 páginas descrevendo dramas, alegrias, amores e polêmicas. Inclui na narrativa poemas, ironias a políticos, seu processo de mudança da favela para o asfalto e quadrinhas, como esta dedicada a Dantas: “O Audálio é nortista/ É o símbolo da bondade/ Vêio ensinar o paulista/ A solidariedade”. Mas a 22 de fevereiro, anota: “Levantamos as 8 horas. Os filhos não fôram na escola porque estava cansados. Estava chuvendo e as aguas invadiram a favela. Que suplicio. Da a impressão de estarmos residindo em Veneza.” Dia 26 de março: “Eu carreguei tanto papel que estava exausta. Voltava para a favela contando o dinheiro para ver se ia dar para o domingo. Comprei dois quilos de batatas docê, porque o dinheiro e pouco para eu comprar pão amanhã”. No dia 13 de setembro de 1961, porém, ao encontrar um amigo, é outra mulher. “Fiquei alegre porque eu estava limpinha. E o sargento era da favela, e nunca viu-me limpa. Sorri satisfeita, contemplando o olhar do sargento que estava fixos no meu rosto.”

Material inédito Carolina de Jesus Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Material inédito Carolina de Jesus Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Destaca-se no conjunto uma pasta denominada “Carolina de Jesus/ Correspondência absurda”. Constata-se por ela o fim da amizade entre os dois, sobretudo após 1963. Nesse ano, Carolina escreveu 24 cartas para Audálio —e ele, em resposta, apenas cinco. Na maioria, ela o acusa. Há coisas do tipo: “Fico pensando: o senhor Dantas com dois anos n’O Cruzeiro já é diretor. Capacidade, ou bajulação.” A 18 de abril, pede a cabeça de Audálio para o chefe da revista. Nas cartas, frisa sempre: “quero meu dinheiro”. Audálio rebate: “Quanto lhe devo? Não lhe devo um tostão”. Prossegue: “E com que direito você diz a uma pessoa estranha que tenho que lhe pagar ‘tudo o que devo?’ E ameaçar ir à televisão? Sabe o que significa isso? Chantagem! E eu não me curvo a chantagens”.

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Estremecimento

O clima esquenta. Em 1964, Carolina escreve a Edmundo Monteiro, dos Diários Associados, reclamando do “repórter”, cujo livro “desgraçou a minha vida”. Em resposta, Audálio pede que ela engula “o desonesto”. A 10 de dezembro, vendo que era inútil seu apelo, rompe relações. Na carta, fala do “livro que a possibilitou viver”. Comunica que “em vista de suas atitudes”, por todos “os títulos indignas”, não quer mais a “incumbência da Procuração” e o contrato entre eles. “Quanto aos meus direitos autorais, garantidos por lei (...) abro mão deles”. Desta data em diante se diz “absolutamente desligado” de todo “assunto que lhe diga respeito”.

Material inédito Carolina de Jesus Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Material inédito Carolina de Jesus Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Material inédito Carolina de Jesus Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Material inédito Carolina de Jesus Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Em outra pasta, intitulada “Carolina: Relatório de Rendimentos”, o jornalista apresenta balanço financeiro e presta contas do livro publicado em 13 países, com cifras e números fabulosos para a época. No Japão, por exemplo, o livro vendeu 15,5 mil exemplares, o mesmo que nos Estados Unidos e Tchecoslováquia. Na Argentina a venda chegou a 23 mil, Romênia 20 mil e Inglaterra 25 mil. O “Relatório...” informa que “o demonstrativo não incluiu” tiragem americana de 15 mil pocket books, “da qual ainda não foi prestado conta”, e os 11 mil da segunda edição tcheca. Esse acervo se mostra um mar sem fim.


*Tom Farias é jornalista e escritor, autor de “Carolina: uma biografia” (Malê, 2018)