“Audalio, o senhor acha que eu devo escrever dramas? Eu gosto de dramas e comédias. Não é melhor o senhor fazer as reportagens em capítulos, publicando os Diarios?”. O trecho acima é de uma carta inédita, de 1958, assinada por Carolina Maria de Jesus , e tirada de um conjunto de diversos documentos, a que o GLOBO teve acesso exclusivo, do arquivo particular do jornalista Audálio Dantas, morto em 2018.
Marcados pela publicação do livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada” (1960), Carolina e Audálio viveram uma curta, porém intensa, relação de amizade. O acervo de documentos ainda desconhecidos do grande público traz, além de centenas de cartas, muitas fotografias, contratos de edições, recortes de jornais, procurações, e também balancetes detalhados sobre a contabilidade financeira da venda das traduções do livro em 13 países. Há, também, o original da peça baseada no livro “Quarto de despejo”, da dramaturga Edy Lima, e o roteiro de um episódio do seriado “Caso Verdade”, da TV Globo.
![Material inédito de Carolina de Jesus Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/25277969-9c2-488/FT1086A/WhatsApp-Image-2021-11-15-at-18.55.04.jpeg.jpg)
![Material inédito Carolina de Jesus Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/25277971-52a-9d6/FT1086A/WhatsApp-Image-2021-11-15-at-18.55.04-1.jpeg.jpg)
Como grande destaque neste farto material, porém, estão três cadernos manuscritos e inéditos da autora, dois datados de 1960 e um de 1961. Confrontados, seus conteúdos não constam nos dois volumes recém-publicados pela Companhia das Letras (“Casa de alvenaria — volume 1: Osasco”, e volume 2, “Santana”), editados sob a orientação de um conselho formado por especialistas em literatura negra e na obra de Carolina de Jesus.
O aparecimento desse material sugere duas reflexões: a primeira de que há ainda uma lacuna literária em relação às recentes publicações dos diários de Carolina; e a segunda de que, pelo visto, o mundo editorial ainda há de se surpreender com novos achados da escritora. Sabe-se que Carolina escreveu muito e entregou a muita gente parte do que não conseguia publicar, na esperança de voltar a se ver em letra de forma. Clélia Pisa e Maryvonne Lapouge, responsáveis pela divulgação de Clarice Lispector na França, e que conheceram Carolina por volta de 1965, são testemunhas dessa fase: a autora de “Quarto de despejo” deu a elas os cadernos que, em edição francesa, ficariam conhecidos por “Diário de Bitita”.
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Poesia e suplício
Como peças nobres do acervo liberado pela filha de Audálio, a também jornalista Juliana Dantas, esses cadernos têm muito o que contar. Aliás, com a publicação da Companhia das Letras e a inauguração da exposição “Meu Brasil para os brasileiros”, em homenagem a Carolina, no Instituto Moreira Salles (IMS) em São Paulo , Juliana tem se pronunciado, através de sua conta no Twitter, sobre possíveis “insinuações” e “acusações graves” referentes a seu pai. Algumas são ilações de que ele teria se “aproveitado” da ingenuidade de Carolina, ou de não ter editado na íntegra seus diários e outros escritos. Mesmo sobre o material inédito, até então supunha-se que o jornalista alagoano tivesse doado tudo o que guardava em casa a respeito de Carolina à Biblioteca Nacional. Mas não.
Os dois cadernos de 1960 foram redigidos na favela do Canindé; o de 1961, quando ela já vivia no bairro de Santana. Neles, Carolina mantém o estilo que a levou ao sucesso mundial. Os dois primeiros, escritos entre 16 de fevereiro e 17 de maio, relatam seus últimos meses na favela ; no seguinte, de 30 de agosto a 27 de outubro, fala da vida na “sala de visitas”. Os três somam mais 500 páginas descrevendo dramas, alegrias, amores e polêmicas. Inclui na narrativa poemas, ironias a políticos, seu processo de mudança da favela para o asfalto e quadrinhas, como esta dedicada a Dantas: “O Audálio é nortista/ É o símbolo da bondade/ Vêio ensinar o paulista/ A solidariedade”. Mas a 22 de fevereiro, anota: “Levantamos as 8 horas. Os filhos não fôram na escola porque estava cansados. Estava chuvendo e as aguas invadiram a favela. Que suplicio. Da a impressão de estarmos residindo em Veneza.” Dia 26 de março: “Eu carreguei tanto papel que estava exausta. Voltava para a favela contando o dinheiro para ver se ia dar para o domingo. Comprei dois quilos de batatas docê, porque o dinheiro e pouco para eu comprar pão amanhã”. No dia 13 de setembro de 1961, porém, ao encontrar um amigo, é outra mulher. “Fiquei alegre porque eu estava limpinha. E o sargento era da favela, e nunca viu-me limpa. Sorri satisfeita, contemplando o olhar do sargento que estava fixos no meu rosto.”
![Material inédito Carolina de Jesus Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/25277976-34e-57c/FT1086A/WhatsApp-Image-2021-11-15-at-18.55.04-3.jpeg.jpg)
Destaca-se no conjunto uma pasta denominada “Carolina de Jesus/ Correspondência absurda”. Constata-se por ela o fim da amizade entre os dois, sobretudo após 1963. Nesse ano, Carolina escreveu 24 cartas para Audálio —e ele, em resposta, apenas cinco. Na maioria, ela o acusa. Há coisas do tipo: “Fico pensando: o senhor Dantas com dois anos n’O Cruzeiro já é diretor. Capacidade, ou bajulação.” A 18 de abril, pede a cabeça de Audálio para o chefe da revista. Nas cartas, frisa sempre: “quero meu dinheiro”. Audálio rebate: “Quanto lhe devo? Não lhe devo um tostão”. Prossegue: “E com que direito você diz a uma pessoa estranha que tenho que lhe pagar ‘tudo o que devo?’ E ameaçar ir à televisão? Sabe o que significa isso? Chantagem! E eu não me curvo a chantagens”.
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Estremecimento
O clima esquenta. Em 1964, Carolina escreve a Edmundo Monteiro, dos Diários Associados, reclamando do “repórter”, cujo livro “desgraçou a minha vida”. Em resposta, Audálio pede que ela engula “o desonesto”. A 10 de dezembro, vendo que era inútil seu apelo, rompe relações. Na carta, fala do “livro que a possibilitou viver”. Comunica que “em vista de suas atitudes”, por todos “os títulos indignas”, não quer mais a “incumbência da Procuração” e o contrato entre eles. “Quanto aos meus direitos autorais, garantidos por lei (...) abro mão deles”. Desta data em diante se diz “absolutamente desligado” de todo “assunto que lhe diga respeito”.
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![Material inédito Carolina de Jesus Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/25278000-633-c07/FT450A/WhatsApp-Image-2021-11-15-at-18.55.04-5.jpeg.jpg)
Em outra pasta, intitulada “Carolina: Relatório de Rendimentos”, o jornalista apresenta balanço financeiro e presta contas do livro publicado em 13 países, com cifras e números fabulosos para a época. No Japão, por exemplo, o livro vendeu 15,5 mil exemplares, o mesmo que nos Estados Unidos e Tchecoslováquia. Na Argentina a venda chegou a 23 mil, Romênia 20 mil e Inglaterra 25 mil. O “Relatório...” informa que “o demonstrativo não incluiu” tiragem americana de 15 mil pocket books, “da qual ainda não foi prestado conta”, e os 11 mil da segunda edição tcheca. Esse acervo se mostra um mar sem fim.
*Tom Farias é jornalista e escritor, autor de “Carolina: uma biografia” (Malê, 2018)