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Como o Brasil do início do século XX se leu em Proust

Autor de livro sobre a influência do escritor francês nos trópicos analisa o impacto da obra do criador de ‘Em busca do tempo perdido’ em movimentos como o regionalismo e na leitura do espaço urbano carioca
Vitrine da Livraria e Editora Globo anuncia a chegada da primeira tradução da obra de Marcel Proust no Brasil, no final da década de 1940 Foto: Reprodução
Vitrine da Livraria e Editora Globo anuncia a chegada da primeira tradução da obra de Marcel Proust no Brasil, no final da década de 1940 Foto: Reprodução

Comemoram-se hoje (10) os 150 anos do nascimento de Marcel Proust. Autor reconhecido como um dos maiores da literatura do século passado, que recupera a tradição literária do XIX e apresenta em germe todas as inovações do XX.

Esse também é um momento de construção de uma identidade cultural brasileira. Basta lembrarmos da Semana de Arte Moderna de 1922, do desenvolvimento dos movimentos regionalistas ou da reflexão identitária promovida nos anos 30 pelos trabalhos de Gilberto Freyre, Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, dentre outros.

É fascinante entender a relação entre um escritor parisiense como Proust e, por exemplo, Freyre, que reivindicou no prefácio de “Casa grande e senzala” o autor de “Em busca do tempo perdido” como um elemento capaz de pensar a identidade brasileira “redescoberta” nas cidades históricas de Minas Gerais.

Brasileiros que viviam em Paris descobriram a obra de Proust já em 1913, no contexto da publicação de “No caminho de Swann”. No entanto, somente em 1919 o escritor passa a ser conhecido no Brasil, em boa medida graças à sua vitória no prêmio Goncourt com “À sombra das raparigas em flor”, segundo dos sete volume s de “Em busca do tempo perdido”.

Causou grande interesse entre os brasileiros a polêmica da vitória de Proust. Nacionalistas franceses inflamados pela vitória do país na Primeira Guerra Mundial se indignaram com a escolha do livro, escrito por um mundano homossexual, no lugar de “As cruzes de madeira”, do veterano Roland Dorgelès.

Um outro canal de circulação da obra proustiana no Brasil tem o aspecto de um romance. Proust teve um incômodo secretário e provável amante chamado Henri Rochat, que, assim como outro secretário, Alfred Agostinelli, teria servido de modelo para a personagem Albertine. Cansado da presença de Rochat, Proust lhe arranjou um emprego na América. O escritor François Mauriac chegou a pensar que o destino fosse os Estados Unidos. Mas Proust, por intermédio do amigo Horace Finaly, enviou Rochat para a filial do Banco de Paris e dos Países Baixos no Brasil.

Amante trouxe livros

Assim chegou ao Nordeste brasileiro o “último prisoneiro de Marcel Proust”, como descreveu o crítico Tadeu Rocha, em uma alusão a Albertine e ao quinto volume de “Em busca do tempo perdido”. Rocha investigou essa passagem de Henri Rochat pelo Brasil. O secretário teria morado em Recife, onde levou uma vida dispendiosa, gastando mesadas enviadas por uma “tia” francesa. Mas a “tia” — “tante”, em francês — seria, na realidade, uma gíria para homossexual, portanto uma referência a Proust.

Rochat teria partido de Recife sem pagar a pousada onde morava. Deixou sua mala como caução da dívida. Dentro dela, estavam fotos de Proust e vários volumes de “Em busca do tempo perdido”, com dedicatórias do autor. Esses livros foram levados por um funcionário da Latécoère, os antigos correios aéreos franceses, ao médico da base da empresa em Maceió, o romancista e poeta Jorge de Lima.

Foi Lima quem publicou em 1925 o poema “O mundo do menino impossível”, em que uma criança quebra os brinquedos europeus oferecidos pelos avós, símbolo da recusa da cultura importada. Seu contexto é repleto de alusões a “No caminho de Swann”, o primeiro volume da obra de Proust. Em 1929, Lima também foi o primeiro brasileiro a escrever um trabalho de pesquisa sobre o autor francês.

Nos anos 20 e 30, a leitura regionalista de Proust se encontra também em José Lins do Rego. Particularmente em “Menino de engenho”, onde é retratada uma infância ideal no campo, em uma paisagem impregnada pela fauna e flora brasileiras. Na mesma época emerge uma leitura de Proust ligada ao espaço urbano carioca, que associa o Rio de Janeiro à Paris da Belle Époque descrita nos volumes de “Em busca do tempo perdido”.

Encontramos essa leitura não apenas nas conferências de críticos como Jackson de Figueiredo e Alceu Amoroso Lima, mas também em poemas como “Elegia a Marcel Proust”, do poeta gaúcho Augusto Meyer, ou romances como “Sob o olhar malicioso dos trópicos”, do escritor Barreto Filho. Esse romance adapta ao verão carioca, por exemplo, a importante passagem dos ruídos de Paris, em “A prisioneira”, em que o narrador de “Em busca do tempo perdido” percebe pela janela a atmosfera de sua cidade.

Paulistas de fora

Nesse período, somente um espaço cultural brasileiro parece não comentar a obra proustiana: o paulista. Absorvido completamente pelo movimento modernista, seus críticos parecem dar mais importância a vanguardistas europeus como Blaise Cendrars, convidado a ir a São Paulo em 1924. Proust ainda era visto por eles como produto de uma literatura europeia do século XIX.

Por um lado ou por outro, fato é que essas chegadas múltiplas da obra de Proust ao Brasil revelam a riqueza cultural do país. Pode-se ler o francês tanto pelo regionalismo da vida rural e camponesa quanto pela visão de elite do Rio, ou ainda pelo modernismo paulista, avesso a uma certa importação cultural após a catástrofe da Primeira Guerra. Assim, vemos vários Brasis se lerem de maneiras distintas em uma única obra literária que, sendo atualidade nos anos 1920 em Paris, também consegue impactar o país ao chegar por aqui.

* Etienne Sauthier é doutor em História pela Universidade Paris 3, professor de ensino secundário na França e autor do livro “Proust sous les tropiques” (Presses Universitaires du Septentrion)