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Conceição Evaristo: ‘É hora de se armar com coragem e esperança’

Autora é tema de livro e seminário que discutem o impacto de sua 'escrevivência' na cultura brasileira
Conceição Evaristo: sua escrevivência é estudada em livro e seminário Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Conceição Evaristo: sua escrevivência é estudada em livro e seminário Foto: Leo Martins / Agência O Globo

RIO — Há muitas definições para “escrevivência” , conceito criado por Conceição Evaristo para se referir a uma literatura sobre a experiência e as lembranças da população negra. Mas foi em 2018, num encontro com alunos da rede pública de Porto Alegre, que a autora mineira encontrou a sua mais comovente interpretação. Quando perguntaram a um menino de 6 anos chamado Vitor o que ele entendia pelo termo, o garoto respondeu, imediatamente: “é escrever de nós”.

O insight do menino inspirou o título Escrevivência: a escrita de nós” ((Mina Comunicação e Arte), e-book organizado por Constância Lima Duarte e Isabella Rosado Nunes, que reúne o olhar de diferentes especialistas em educação e representantes da literatura negra contemporânea sobre a importância do conceito. A publicação gratuita está sendo lançada agora, junto com o seminário virtual “A escrevivência de Conceição Evaristo”, que acontece hoje e amanhã, ds 15h às 17h, com participações dos escritores Jeferson Tenório e Eliana Alves Cruz e promoção do Itaú Social. As inscrições podem ser feitas pelo site do evento .

Nesta entrevista — por telefone, de Igarapé, Minas Gerais —, a autora de obras como “Insubmissas lágrimas de mulheres” (Malê) fala sobre a apropriação da escrevivência por diferentes campos do conhecimento, sua experiência em leituras pelo país, e as memórias de sua mãe, que completou 98 anos no mês passado.

O seminário de hoje, assim como o livro que o acompanha, mostra a influência da escrevivência em outros artistas e pesquisadores de diversas áreas. Pensa nesse conceito como algo aberto?

A escrevivência é um projeto que nasce dentro de uma proposta de autoria negra. Mas hoje é adaptada a vários projetos de elaboração de conhecimento. Um conceito não pode ficar fechado apenas para aqueles que são considerados iluminados. Já tem até uma dissertação de mestrado sobre as relações com a fotografia. É um trabalho da pesquisadora Vilma Neres Bispo que registra fotos de famílias negras. Também há trabalhos nas áreas da música, dança, pedagogia...

A senhora vem ministrando oficinas e trabalhando com mediadores de leituras em várias cidades do país. Como tem sido essa experiência?

Eu me lembro de uma atividade em que os alunos desenharam o que gostavam de fazer. Teve coisas maravilhosas, desde o menino que se desenhou cantando na igreja até aquele que se desenhou visitando o pai na prisão. As crianças incorporaram o conceito de escrevivência. Quem diz que o brasileiro não gosta de ler não conhece a relação que as crianças criam com os livros nas escolas e nas bibliotecas comunitárias.

Falando nisso, o que achou do projeto do governo de taxar livros , com a justificativa de que apenas os mais ricos consomem o produto?

É contraditório. Se só ricos compram livros, então os livros deveriam ser mais baratos. Parece-me que quem faz esse tipo de discurso não está pensando no direito à leitura. As classes mais baixas não têm acesso e não terão acesso a livros se não houver um projeto para democratizá-los.

Como a senhora avalia a gestão de Sergio Camargo na Fundação Palmares, que chamou o movimento negro de “escória maldita” ?

Eu tenho um respeito muito grande pela Fundação Palmares. Por isso prefiro nem falar sobre o que está acontecendo agora. Prefiro lembrar os grandes nomes que passaram por lá, como o poeta Adão Ventura e o professor Joel Rufino ( ambos ex-presidentes da instituição ). Eu prefiro guardar os bons momentos da Palmares.

A senhora está desde outubro no interior de Minas, visitando sua mãe, que acaba de fazer 98 anos. Como tem sido esse contato na quarentena?

Ela fica na casinha dela, enquanto filhos, netos e bisnetos ficam na varanda falando com ela. Eu fico na casinha que tenho na cidade. Só saio de casa para vê-la na varanda. Tem que tomar cuidado com esse vírus. O bichinho corona ainda não foi embora, está só esperando para pôr as garras de fora.

A memória das mulheres negras é essencial no conceito de escrevivência, incluindo a questão da transmissão. Qual é a importância da sua mãe nisso tudo?

O primeiro sinal de vida de que tenho memória foi com ela. Eu e minhas irmãs a observávamos desenhar um sol no chão ( o gesto era uma simpatia para chamar o sol, que sua mãe havia aprendido com seus antepassados ). Esse gesto dela está muito marcado, é a gênese da minha obra. Minha mãe é uma memorialista, conta muitas histórias do passado. E, à medida que ela vai envelhecendo, essa memória vai se manifestando mais, como numa espiral do tempo.

Que tipo de lembrança ela tem?

Minha mãe nasceu no interior de Minas, onde é hoje a região do aeroporto de Confins. E ela conta que até ali pelos 7, 8 anos, as crianças andavam nuas. Porque não tinham roupa, lógico. Ela nasceu em 1922. E o que me impressiona muito nessa data é que, enquanto crianças andavam nuas no interior do país, acontecia a Semana de Arte Moderna de São Paulo. Essa é a disparidade do Brasil, que hoje ainda continua.

Como vê a perspectiva para a população negra no país nos próximos anos?

Tenho pensado muito na prática quilombola. Quando um sujeito escravizado fugia para o quilombo, ele não tinha certeza de que conseguiria chegar lá. Inclusive, tornava-se ainda mais vulnerável nesse processo, pelo perigo que representava. A única certeza que ele tinha é que estava lutando por um direito, a sua liberdade. Acho que não é a hora de pensar o que vai ser o amanhã, é hora de pensar que estamos fazendo o que achamos certo. É hora de armar-se com esta esperança e coragem, mesmo sem ter a certeza do que irá acontecer.