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Conheça a escritora do Zimbábue Tsitsi Dangarembga, voz por trás de uma das '100 histórias que moldaram o mundo'

'Condições nervosas' retrata uma Rodésia (atual Zimbábue) devastada pela guerra civil nos anos 1960
Autora de "Condições nervosas", Tsitsi Dangarembgae diz que voz de uma mulher africana ainda ser algo raro entre os clássicos do cânone literário Foto: Divulgação
Autora de "Condições nervosas", Tsitsi Dangarembgae diz que voz de uma mulher africana ainda ser algo raro entre os clássicos do cânone literário Foto: Divulgação

RIO — Pode se dizer que a obra “Condições nervosas” da escritora Tsitsi Dangarembga , eleita uma das “100 histórias que moldaram o mundo” pela rede britânica BBC , é um exemplo daquele ditado: “já nasceu clássico”. A singularidade da voz de uma personagem feminina lutando contra os efeitos do colonialismo e do patriarcalismo, aliada a potência narrativa da autora do Zimbábu e, tornaram o livro uma referência imediata entre escritores contemporâneos do continente africano. Agora, após três décadas de seu lançamento em 1988, a obra finalmente chega ao Brasil.

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E o fato da voz de uma mulher africana ainda ser algo raro entre os clássicos do cânone literário evidencia uma grande lacuna na literatura universal. É o que aponta a própria autora, em entrevista por e-mail ao GLOBO. Não enxergar a experiência feminina da África representada na literatura foi uma das centelhas que a levaram a escrever esse romance de formação.

— Ainda estamos lidando com nossos legados coloniais e o modo como afetam principalmente as vidas de meninas e mulheres jovens — afirma a autora do livro, ranqueado entre os clássicos “Os filhos da meia-noite”, de Salman Rushdie, e “O pequeno príncipe”, de Antoine de Saint-Exupery na lista da BBC.

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“Condições nervosas” se passa na Rodésia (atual Zimbábue) devastada pela guerra civil durante as décadas de 1960 e 1970. A obra narra a saga da jovem Tambu, que sonha com uma educação que lhe é negada pela família. Sob o peso da pobreza e das estruturas do patriarcalismo, seus pais acham que é mais importante que seu irmão Nhamo vá para a escola, enquanto ela aprende os afazeres de casa. Até que um evento trágico (a morte de Nhamo) abre uma oportunidade para que ela estude. Fato que é narrado já na primeira frase do livro de forma perturbadora: “Não lamentei quando meu irmão morreu”.

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O título do romance é uma alusão ao prefácio de Jean-Paul Sartre ao livro “Condenados da terra”, de Franz Fanon. A “condição nervosa” do nativo é, de acordo com o resumo do francês sobre a obra de Fanon, uma relação entre colonizador e colonizado, que condena o segundo a um constante distúrbio psicológico.

Peso do racismo

Ao longo do livro, esses danos que a experiência colonial exerce na construção subjetiva das pessoas aparece em outras personagens, como em Nyasha, prima de Tambu. Depois de viver na Inglaterra com os pais por vários anos, ela retorna à Rodésia e vive num constante conflito entre a imagem ocidental e a identidade africana. E, por fim, acaba criando distúrbios alimentares ligados a imaginários de beleza que lhe foram introjetados na Inglaterra.

— Sociedades patriarcais causam inferioridade em jovens garotas e isso permanece quando elas se tornam mulheres — analisa Dangarembga, que busca referência em escritoras como Toni Morrison e Maya Angelou.

A história, aliás, tem contornos autobiográficos. Nascida na Rodésia em 1959, Tsitsi Dangarembga passou parte da infância e adolescência na Inglaterra, onde teve que conviver com o peso do racismo no país. De volta ao Zimbábue na década de 1980, passou a estudar na Universidade de Harare, na capital do país, onde escreveu o romance que correu sérios riscos de não sair do papel.

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Os editores do Zimbábue na época — todos homens — não estavam interessados na história. Assim, ela conseguiu publicá-lo somente na Inglaterra pelo selo “Women’n press”, e tornou-se a primeira mulher negra do Zimbábue a lançar um livro em inglês.

A autora passou a se dedicar a expurgar séculos de repressão social do intelecto e dos corpos de mulheres africanas através da arte. E não só nos livros: além de escritora, ela também é cineasta e dramaturga. Formada em cinema em Berlim, ela assina o roteiro do filme “Neria” (1993), que se tornou a maior bilheteria da história do Zimbábue.

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Após morar alguns anos na Europa, Dangarembga retornou ao país natal em 2000, onde criou projetos que formam mulheres artistas e cineastas. Fundou ainda a produtora Nyerai Films e o Festival de Cinema Feminino de Harare. E é na capital do país, ao lado dos três filhos e do marido, que ela está atualmente enfrentando a pandemia da Covid-19.

— Os hospitais aqui enfrentam falta de equipamentos e insumos básicos. A taxa de desemprego, em torno de 80%, faz a economia depender da informalidade que desaba com os lockdowns — conta ela. — Há até espancamento pela polícia para quem fura os bloqueios.

Porém, mesmo narrando esse cenário sombrio, ela destaca que a sociedade civil vem pressionando o governo local a garantir uma rede de proteção social para os milhões de vulneráveis. E, além do olhar duro para a realidade, consegue enxergar beleza em meio ao caos.

— Vi nas redes sociais pais brincando de jogos antigos, tradicionais com as crianças. É de aquecer o coração que as famílias possam sair fortalecidas disso tudo.

Autor: Tsitsi Dangarembga. Editora: Kapulana. Tradução: Carolina Kuhn Facchin. Páginas: 234. Preço: R$ 52,90.