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Contos sobre violência e política marcam estreia de Mariana Enriquez no Brasil

Autora argentina lança o terror 'As coisas que perdemos no fogo'
Mariana Enriquez: Argentina de ruas escuras, bairros decadentes e casas abandonadas Foto: Leonardo García / Divulgação
Mariana Enriquez: Argentina de ruas escuras, bairros decadentes e casas abandonadas Foto: Leonardo García / Divulgação

RIO —  Nada de cafés, milongas, belos jardins ou largas avenidas. A Argentina que emerge nos contos de Mariana Enriquez é composta por ruas escuras, bairros decadentes e casas abandonadas, povoada por prostitutas, viciados, crianças de rua, adolescentes em busca de transgressão e aventuras. Nesses cantos esquecidos das cidades portenhas, a rotina é quebrada pelo terror: pessoas desaparecem, corpos surgem mutilados, luzes se acendem e se apagam sozinhas, há muitas perguntas e poucas respostas. Aos 44 anos, a escritora argentina, apontada como uma das principais vozes de sua geração e com oito obras publicadas, lança agora o seu primeiro livro no Brasil, a reunião de contos “As coisas que perdemos no fogo” (Intrínseca), já traduzida para mais de 20 países.

Para Mariana, que cresceu numa família de classe média, a não ser que você seja muito rico, todo esse universo está sempre muito próximo num país como a Argentina. Seu trabalho como jornalista — hoje, ela é subeditora do jornal “Página 12” — também a aproximou desse mundo.

— Todas as situações dos contos, esses personagens, essas experiências dos rincões da cidade são bastante próximas de mim. Buenos Aires é uma cidade muito linda, espetacular, não é tão fácil ver seus cantos obscuros. Mas, se você vive aqui, não é difícil identificá-los. A Argentina é um país com crises econômicas cíclicas. A cada dez anos, mais pessoas são marginalizadas — afirma Mariana, em entrevista ao GLOBO por telefone de Buenos Aires, onde mora.

A crise, com toda instabilidade que ela traz, é um espectro que ronda os contos de “As coisas que perdemos no fogo”. A adolescência da escritora foi marcada pela dura recessão dos anos 1980 que, segundo ela, fechou a possibilidade de sua geração pensar no futuro e legou uma profunda sensação de abandono numa etapa da vida repleta de escolhas difíceis. Mariana acredita que a sensação de crise permanente se reflete nas personalidades das protagonistas:

— Todas elas estão em um momento de incerteza. Acho que isso é o que ocorre com a vida num país que está sempre esperando a próxima crise. Há uma constante instabilidade, que é econômica, é claro, mas que termina incorporada na psicologia das pessoas. Essa sensação me interessa na literatura porque traz a percepção de uma realidade sempre muito frágil, onde tudo pode mudar. As pessoas vivem então num estado de alerta permanente, de ansiedade e incerteza.

Assim como a crise, o terror desestabiliza ao introduzir o inexplicável na realidade e serve de alegoria para as feridas abertas, como a ditadura militar, a violência de gênero e a marginalização da população. Mariana diz achar o terror o gênero ideal para tratar temas difíceis.

— Sempre gostei muito de terror. É um gênero que permite falar de coisas muito difíceis, como o medo da morte e da violência, e de várias coisas que nos perturbam muito de uma maneira que é, ao mesmo tempo, divertida — diz ela. — Na tradição literária, Cortázar fazia isso com o fantástico, que irrompia e desorganizava a realidade. Há uma série de questões da sociedade argentina que são um terreno bastante natural para o horror.

FANTASMAS DO PASSADO

Uma dessas questões, muito cara a Mariana, são os crimes da ditadura do país entre 1976 e 1983. A autora conta que não se sentia à vontade para tratar o assunto, que já foi tema de romances, reportagens, testemunhos, documentários e longas, por uma abordagem realista. Para ela, a ditadura ainda assombra os argentinos, como um fantasma de uma história de terror. No seu caso, que era criança nos anos mais duros do regime, restou “um medo atávico”. Nos contos, o estado de exceção surge em detalhes das tramas, como uma hospedaria que funcionou como escola de treinamento para policiais e um rio onde corpos foram atirados. Já “A casa de Adela”, em que a personagem some dentro de uma casa abandonada, pode ser lido como uma alegoria dos desaparecimentos forçados ocorridos no período e nunca esclarecidos.

— Até pelas suas características, a ditadura é uma questão que a sociedade argentina não conseguiu resolver. Os desaparecidos não têm corpo, há o pacto de silêncio entre os militares... — afirma Mariana. — A história e o cotidiano da Argentina estão cheios de fantasmas, questões que aparecem em diferentes lugares e não podem ser arrancadas. São marcas profundas, de um passado que é impossível de deixar para trás. Escrevo contos de terror, mas que também são políticos.

Os contos de “As coisas que perdemos no fogo” foram escritos ao longo de um ano. Quase todas as protagonistas são mulheres. Mariana diz que não foi proposital. Depois que já tinha muitos contos escritos, percebeu que o fio que os ligava era a voz feminina. Na obra, as questões em torno das mulheres seguem um crescente até o último conto, e o mais violento, que dá título ao livro. Contudo, essas mulheres também são mulheres às margens, cada uma à sua maneira.

— Essas mulheres não são previsíveis, geniais, inteligentes, decididas. São mulheres com vidas confusas, algumas perversas, outras com boas intenções que descobrem que isso não é suficiente. Não queria o lugar comum de uma voz feminina sem matizes.