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Crítica: Alberto Manguel volta ao tema da leitura em nova obra

Conexões de ‘O leitor como metáfora’ são instigantes, mas por vezes rápidas demais

Manguel, que é diretor da Biblioteca Nacional de seu país: leitura como um movimento constante
Foto: David Levenson / David Levenson/Getty Images
Manguel, que é diretor da Biblioteca Nacional de seu país: leitura como um movimento constante Foto: David Levenson / David Levenson/Getty Images

RIO — O tema principal da obra de Alberto Manguel sempre foi a leitura, desde “Uma história da leitura”, passando pelas coletâneas de ensaios “A biblioteca à noite” e “A cidade das palavras”, até chegar a “Os livros e os dias”, um diário de releituras feitas por ele ao longo de um ano, um livro por mês. A lista, contudo, não é exaustiva e está longe do fim, como prova sua última publicação lançada no Brasil, “O leitor como metáfora: o viajante, a torre e a traça”. Manguel, que ocupa o posto de diretor da Biblioteca Nacional argentina, ganha a vida há décadas como leitor e escritor profissional, organizando antologias (contos de horror e de amor do século XIX, por exemplo), apresentando conferências e escrevendo prefácios, posfácios e seus próprios ensaios.

Já na introdução, Manguel afirma que “O leitor como metáfora” é um desdobramento (mais abrangente) de “Uma história da leitura”. Trata-se de um aprofundamento da análise de três metáforas que, segundo ele, organizam o imaginário ocidental em torno da atividade da leitura: o leitor como viajante, como um ser isolado (a torre) e como alguém que se nutre obsessivamente da leitura (a traça). Cada metáfora é pensada por Manguel a partir de dois eixos complementares: em primeiro lugar, a carga tanto positiva quanto negativa de cada situação — a viagem como perdição ou iluminação, por exemplo; e, em segundo lugar, a transformação histórica verificada no uso das metáforas — como o leitor isolado na Idade Média é distinto do atual.

Um bom exemplo de como se dá na prática esse procedimento de Manguel está em sua leitura do “Hamlet”, de Shakespeare. “Hamlet”, na condição de estudante da Universidade de Wittenberg, é visto como um “jovem intelectual” no contexto da peça, alguém que crê nas possibilidades da “filosofia” e do “saber organizado”. “Tal crença no poder intelectual”, escreve Manguel, “não era, no tempo de Shakespeare ou em qualquer época, desprovida de reservas, e os eruditos eram vistos com uma mistura de admiração reverente e desconfiança”. Tem-se a impressão de que, sem os livros, Hamlet não seria nada de especial — ele é um leitor recluso, ao mesmo tempo celebrado e denunciado por seus atos.

Como contraponto à leitura de Hamlet somente através da especulação acerca de seu contexto imediato, Manguel cita a recriação feita por Tom Stoppard em sua peça de 1966, “Rosencrantz e Guildenstern estão mortos”, e o recente livro de Stephen Greenblatt, “Como Shakespeare se tornou Shakespeare”. Para Manguel, tais revisões recentes colocam ênfase não na resolução de um polo ou outro (ação ou contemplação, vida ou leitura), mas na irresolução, na força estética do “estado de expectativa”: isso “converte a torre de marfim numa sala de espera”, marcando, em primeiro lugar, a transformação da leitura de Hamlet e também a reconfiguração da metáfora analisada por Manguel — nesse caso, o leitor isolado na “torre de marfim” dos privilegiados (e sua necessária descida ao “mundo real”).

Nesse ponto, chegamos a uma característica típica de Manguel e de seu modo de exposição, que é tanto uma força quanto uma fraqueza. As referências e as conexões entre elas são sempre instigantes, mas por vezes rápidas demais, quase superficiais. O autor é o primeiro a reconhecer esse ponto, quando em uma nota de rodapé escreve: “Espero que o leitor perdoe essa falha [não mencionar número de página de citações], que se deve menos ao desleixo que a um entusiasmo de amador.” É inegável o interesse suscitado pelos saltos dados por Manguel em seu ensaio — de Santo Agostinho a Dante e Curtius, por exemplo —, e o caráter breve dos comentários pode ser tomado como um estímulo para o contato direto com os autores resgatados. Essa parece ser a principal lição de Alberto Manguel em “O leitor como metáfora”: todo esforço de leitura é incompleto, gerando um movimento constante que leva de um texto a outro, ligando leitores no tempo e no espaço.

Cotação: Bom

Kelvin Falcão Klein é professor da Escola de Letras da UniRio