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Crítica: Amigas rivais conduzem obra menor de Zadie Smith

Autora celebrada de sua geração, romancista britânica alterna ironia e compaixão em ‘Ritmo louco’ e agrada com a história — até se perder em longa trama
SC - Zadie Smith - divulgação Foto: Only the Best :-))
SC - Zadie Smith - divulgação Foto: Only the Best :-))

Criada num bairro proletário de Londres, filha de uma imigrante jamaicana com um comerciante britânico, a premiada Zadie Smith faz da periferia da antiga capital do mundo o eixo de sua obra ficcional — como agora em “Ritmo louco”, seu quinto romance.

Nos conjuntos habitacionais de Willesden e Kilburn — ao norte de museus e teatros abarrotados de turistas, dos bancos e escritórios da City, das badaladas pontuais do Big Ben — os livros de Zadie têm como território preferencial um subúrbio pequeno, mas no qual se reúnem habitantes vindos de todos os cantos do mundo. São imigrantes que deixaram territórios ocupados pelos ingleses para tentar a vida no coração do império.

A dominação colonial e seu colapso são o mote de obras já clássicas da literatura de língua inglesa, como “Filhos da meia-noite” (1981), de Salman Rushdie, ou “Uma casa para o Sr. Biswas” (1961), de V.S. Naipaul. Às vezes alinhada a estes como expoente contemporânea da chamada “literatura pós-colonial”, Smith, porém, escreve de outra perspectiva.

Para Rushdie e Naipaul, a migração foi uma experiência direta. Em Smith, ela é sobretudo uma história de família, transmitida (ou recalcada) pelos pais. Não constitui tanto um enredo principal quanto o pano de fundo a partir do qual a trama se desenrola.

minha amiga genial

Em “Ritmo louco”, esse pano de fundo é o ponto de partida para a amizade entre duas garotas numa vizinhança pobre de Londres. A narradora de Smith conhece Tracey, sua vizinha de rua, num curso de dança numa igreja local. A cor da pele aproxima as duas – meninas morenas no meio de crianças brancas. A paixão pela dança sela a amizade, que atravessa os anos 1980 e 1990. As duas passam horas na casa uma da outra assistindo a fitas VHS de musicais antigos — “Swing time”, título original do livro, é um filme de 1936 com Fred Astaire e Ginger Rogers — para em seguida tentar reproduzir as coreografias.

Logo fica claro que Tracey é a amiga talentosa do par. Essa superioridade cria um contraponto na relação: em termos de status, é a família da narradora que está por cima — seu conjunto habitacional é um pouco mais novo, sua família um pouco mais estável, seus pais um pouco mais instruídos.

Smith narra a dinâmica de admiração e competição entre as duas numa voz que alterna ironia e compaixão, distanciamento e proximidade. Sem alarde, esse olhar agudo sobre dramas íntimos também captura algo do próprio desenrolar da História, de um processo maior do qual as duas fazem parte. Algo visível na cor da pele, nas cenas de Hollywood que moldam movimentos e aspirações, nas brincadeiras que explicitam tensões latentes de classe, raça e gênero.

O registro se altera e ganha ares farsescos nos capítulos que nos levam ao segundo fio narrativo do romance. Nele, acompanhamos a narradora já mais velha, trabalhando como assistente pessoal da estrela pop Aimee. Australiana de pele clara e fama mundial, ela é tudo que a narradora e Tracey sonhavam ser em suas fantasias suburbanas.

Quando Aimee resolve construir uma escola para meninas num país africano, Smith ressalta o desencontro entre o filantropismo narcisista e desinformado da cantora e as pessoas que quer ajudar. A trama retoma em chave mais explícita muitas questões que atravessam a história da amizade entre as duas garotas, mas o olhar mais direto acaba sendo empobrecedor.

Aos poucos, a comédia de erros de Aimee e seu entourage começa a soar caricata, até deixar a impressão de que deveria ter ficado de fora do romance ou rendido no máximo um par de capítulos. Em vez disso, toma quase metade do livro.

“Ritmo louco” tem muitas das qualidades que fizeram de Smith uma das autoras mais celebradas de sua geração, mas neste livro o talento da romancista acaba a serviço de um projeto que promete mais, afinal, do que consegue realizar.

Miguel Conde é doutor em  Letras pela PUC-Rio

“Ritmo louco”

Autora: Zadie Smith

Editora: Companhia das Letras

Tradução: Daniel Galera

Páginas : 528

Preço: R$ 79,90

Cotação: Regular