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Crítica: as vidas que se desenrolam nos contos de Lucia Berlin

Autora dialoga com Tchekhov e Raymond Carver em textos de inspiração autobiográfica
Lucia Berlin por Cássio Loredano Foto: Loredano
Lucia Berlin por Cássio Loredano Foto: Loredano

RIO - Desde que li este “Manual da faxineira” pela primeira vez, há coisa de um ano, fiquei pensando no que escreveria se tivesse de resenhá-lo. Agora, às voltas com a releitura, em tradução, o problema continuou, e acredito que a razão dessa dificuldade está justamente naquilo que torna o livro notável: esses contos têm algo que soa muito fácil, muito acessível (em um deles a narradora começa dizendo “Espera, me deixa explicar”) e, ao mesmo tempo, parecem apalpar coisas profundas, grandes mistérios (outro conto começa com “Suspiros, o ritmo dos nossos batimentos cardíacos, as contrações do parto, orgasmos, tudo entra no mesmo compasso como relógios de pêndulo postos um ao lado do outro logo batem em uníssono”).

Claro: sei contextualizar o que li, marcar a inserção dessa poética em uma série histórica particular, e reconhecer as conversações que Berlin tem como uma certa tradição do conto, da narrativa breve. Essas histórias coletadas aqui, mais da metade de todas que a autora escreveu, bebem na fonte de antecessores destacados: dá pra apreender muito da especifidade do olhar de Berlin marcando seus vínculos com Tchekhov que, no conto “Ponto de vista”, é mencionado (“usado” talvez fosse um termo melhor, como se perceberá ao ler). Há uma visão do humano que toma o equívoco como potência, e não como, necessariamente, malefício. Também dá pra dizer que vem de Tchekhov certa recusa ao final retumbante e a uma lição de moral didática, esopiana. O buraco é mais embaixo, as coisas humanas menos cristalinas e, nos contos, prosa cristalina nos diz desses embaraços mil entre anseio e inteligibilidade com os quais nos havemos todos os dias.

Há também as conversas que Berlin trava com seus contemporâneos: estamos perto do miserê geral do mundo de Carver, personagens às voltas com alcoolismo, maus-tratos, capturados em uma esquina qualquer de uma vida torta e descritos em uma prosa que tende ao elíptico. Há também uma pequena constelação que envolve o trabalho de Berlin ao de outras narradoras norte-americanas contemporâneas, como Grace Pailey, Lorrie Moore, e Lydia Davis, todas cronistas de absurdos ordinários e inventoras de jeitos de construir literariamente a verossimilhança desses absurdos. E há conexões que me parecem ricas entre um fundo de ternura e generosidade que anima tanto esses contos aqui quanto os de George Saunders: atravessando as diferenças de fisionomia, em ambos nos vemos diante de narrativas que vão nos recônditos da miséria humana para nos alçar de lá por uma coisa informe e imprecisa, um lampejo de algo que dinamiza a transformação nos personagens e envolve quem lê numa espécie de impulso romântico que diz, sempre, que a forma das coisas que encontramos no mundo não é a definitiva, que pode ser melhor, que há mais. Se há uma moralidade nessas narrativas é aquela que antagoniza a secura e o pensamento em linha reta aplicado aos afazeres humanos, e que celebra o riso e a graça como parte do que talvez seja “compreender”.

Isso não constitui, todavia, explicação do que acontece nesses contos, do que os torna tão atrativos. Poderia ficar — como fica Lydia Davis, em seu encomiástico ensaio incluído ao final do livro — falando mil vezes em como os contos de Berlin têm “vitalidade”, em como essas narrativas têm “verdade”. Dá pra fazer uma marchinha de carnaval só acumulando os adjetivos que se recolhem nas resenhas a esse livro e, embora o livro mereça elogios, nem só de loas pode viver o comentário literário.

Algo que muito se fala na recepção ao trabalho de Berlin é que suas histórias são de cunho autobiográfico ou, como diz Davis, precursoras da “autoficção”. Isso parece uma solução (essas histórias são autênticas, pois vêm da vida de quem as escreveu), mas é de fato parte do problema (tudo que se escreve vem, de alguma maneira, da vida de quem escreveu, mas nem tudo nos parece merecer o rótulo de “autêntico”, ou “verdadeiro”). Acompanhamos uma vida ao longo desse livro imenso: as narrativas vão da infância e adolescência, voltadas para o trato com figuras da família da narradora e com a infelicidade escolar, e daí seguimos para a vida de casada, trabalho, filhos, e todas as vicissitudes e agruras de uma adultidade marcada por pobreza e percalços até que, ao final, nos aproximamos de alguma forma de sabedoria precária (há outra forma?). Ao longo do caminho, passamos por coisas tenebrosas (abuso infantil, doença crônica, alcoolismo, câncer) e maravilhosas (amizades, encantamentos eróticos, explorações do ato de escrever com perplexidade e leveza): impressiona a maneira feliz como essa autora encontrou algo que Barthes, ao fim da vida, tanto buscava: uma forma justa de dizer “eu”, um artifício tão perfeito que parece nem ser mais arte, mas só vida mesmo.

*Antonio Marcos Pereira é professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

“Manual da faxineira”

Autor: Lucia Berlin.

Editora: Companha das Letras.

Tradução: Sonia Moreira.

Páginas: 536.

Preço: R$ 69,90.

Cotação: Ótimo.