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Crítica: Elena Ferrante encerra série napolitana em grande estilo

'História da menina perdida' é o desfecho do fenômeno literário
'História da menina perdida', de Elena Ferrante Foto: Divulgação
'História da menina perdida', de Elena Ferrante Foto: Divulgação

RIO —  A série napolitana de Elena Ferrante finalmente teve seu desenlace publicado no Brasil. Lançado na Itália há três anos, “História da menina perdida” (Biblioteca Azul) encerra a tetralogia que transformou a autora italiana em um dos maiores fenômenos literários dos últimos tempos (só no Brasil,  a série já vendeu cerca de 145 mil exemplares) e promoveu uma caça à sua real identidade — visto que ela jamais mostrou o rosto.

Os livros darão origem a uma série da HBO, com estreia marcada para 2018 . A primeira temporada terá oito episódios dirigidos por Saverio Costanzo. As filmagens começam no meio do ano na Itália (a série será toda falada em italiano), mas as atrizes que interpretarão as amigas Lenu e Lila ainda não foram escaladas. No momento, Costanzo trabalha no roteiro ao lado da própria Elena, de Francesco Piccolo (“Habemus papam”) e de Laura Paolucci (“Gomorra”).

LEIA ABAIXO A CRÍTICA DE 'HISTÓRIA DA MENINA PERDIDA'

Último livro da tetralogia napolitana “A amiga genial”, de Elena Ferrante, “História da menina perdida” encerra a trajetória das amigas Lenu e Lila de forma violenta e surpreendente.

No quarto volume, Lenu volta a Nápoles e seu reencontro com Lila coloca as duas amigas em posições complementares e antagônicas. Lila optou por permanecer no bairro e, na superfície, comanda esse espaço como uma estadista centralizadora e generosa. Lenu se torna o elemento estranho e desestabilizador. A reaproximação das duas acontece apenas quando ambas descobrem que estão grávidas.

A relação delas é uma metonímia para as grandes transformações pelas quais passaram as mulheres na virada do século XX para o século XXI. A maternidade, as relações afetivas, a violência doméstica e o feminismo são tratados como deveriam ser tratados: como grandes temas humanos, que merecem ser olhados com a atenção devida.

Em “História da menina perdida” essas questões se aprofundam. A trama se aproxima da década de 90 e dos anos 2000 e esse período da História recente evidencia ainda mais a complexidade da condição feminina — que se transformou de forma decisiva nos últimos anos assim como se transformou ao longo dos quatro livros.

Lina e Lenu são as meninas e mulheres perdidas nessa missão de se colocar no mundo como sujeitos possíveis e não como referência aos homens ao redor. E é no possível que ambas as personagens operam, suas personalidades e decisões se rivalizam, em um embate que é o coração dessa história. É como se Elena Ferrante escrevesse sob a égide da famosa frase da poeta americana Adrienne Rich: “As conexões entre mulheres são as mais temíveis, as mais problemáticas e a força mais potencialmente transformadora do planeta”.

Para além da metáfora do título há também um fato trágico que força o leitor a rever em retrospecto o papel dessas amigas geniais. O desaparecimento de uma criança abala todos os personagens da trama e finalmente revela as condições enigmáticas do sumiço de Lila, contado no primeiro volume. Para os leitores mais atentos, há o retorno de duas personagens emblemáticas do primeiro volume, as bonecas Tina e Nu, que, jogadas em um buraco escuro no pátio do bairro, parecem também ter cumprido uma trajetória fantástica, longe dos olhos do leitor.

Já é lugar comum falar da obra de Ferrante citando o mistério que cerca sua identidade. Mas o que nem a escritora imaginou é que a sociedade machista que ela retrata se manifestaria no mundo real de forma tão redundante — durante muito tempo, a maior aposta a respeito da sua identidade foi de que ela fosse na verdade um homem.

Sua figura movimentou a imaginação dos leitores e o meio literário, mas ainda assim a história de seu verdadeiro nome não é tão interessante quanto seus livros, o que é um feito notável para alguém que já foi considerada uma das cem personalidades mais influentes do mundo e que frequentemente tem obras adaptadas para o cinema e para TV.

“História da menina perdida” encerra a tetralogia sendo fiel às características que fizeram dos livros de Ferrante um sucesso instantâneo: o realismo, a brutalidade e a profundidade. Seja no campo pessoal ou no artístico, devemos dar razão à autora: as entrelinhas daquilo que não é dito abrem espaço para que a boa literatura possa acontecer.

Renata Corrêa é escritora e roteirista

AUTORA: Elena Ferrante. TRADUÇÃO: Maurício Santana Dias. EDITORA: Biblioteca Azul.

QUANTO: R$ 49,90. COTAÇÃO: Ótimo.