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Crítica: Em 'Húmus', Raul Brandão antecipa estratégias narrativas

Obra-prima da vanguarda portuguesa apoia as ideias modernistas de Fernando Pessoa
Capa de "Húmus", de Raul Brandão (Editora Carambaia) Foto: Divulgação / Agência O Globo
Capa de "Húmus", de Raul Brandão (Editora Carambaia) Foto: Divulgação / Agência O Globo

RIO — A obra de Raul Brandão marca a virada do século XIX e a entrada em cena do modernismo. “Húmus” nasce num período de crise — tempo da Primeira Guerra e da Revolução Russa. Tempo em que as ideias de Freud, bem como o pensamento de Nietzsche, se difundem e ecoam na obra do escritor, embora não possa garantir-se que Raul Brandão os tenha lido. O português apoia as modernas ideias de Fernando Pessoa e Sá-Carneiro. Seu romance anuncia um tempo em que se questiona a mesmice, em que os valores se abalam, embora as personagens, à exceção do alter-ego do narrador, se alheiem ao processo de mudança, escondendo-se atrás de máscaras que acabam por fazê-las seres degradados, esvaziados de qualquer problemática existencial. Fragmentária e construindo um “falso diário”, a narrativa antecipa a catástrofe que o “anjo da história” benjaminiano anuncia.

O grito que atravessa a obra brandoniana denuncia essa catástrofe e a presença dos excluídos que a História aliada do poder quer ver esquecidos. Exibe-se aí a face doentia da História. Mas também denuncia-se um dos graves problemas do homem, que luta para manter-se sujeito, num mundo que transforma a vida em simulacro e anuncia a iminência da morte. É como afirma Leonardo Gandolfi no posfácio da edição da Carambaia: “E esse grito é a combinação de um grito individual e coletivo. Ou melhor, um grito que estraçalha a unidade do indivíduo (...)”.

Brandão anuncia nova estratégia narrativa, antecipando o que privilegia a reflexão à ação. Nova e tão perturbadora, que leva a crítica da época a declarar que o autor “zomba da técnica e da composição”, criando um “anti-romance”. Eduardo Lourenço afirma, em 1994, que “o único personagem das quase-ficções de Raul Brandão é a própria ficção que agoniza ou indefinidamente clama a impossibilidade da ficção”. De fato, as personagens, em sua estaticidade, podem ser vistas como “figuras”; o espaço é o de uma vila “encardida”, não nomeada, onde o tempo não avança e a intriga é praticamente inexistente. Em tudo, ou quase, contraria-se o romance tradicional; adentra, como ficção, a modernidade com os seus paradoxos e anuncia o romance moderno em Portugal. Porque, a despeito do lirismo que o percorre, ainda é de narrativa que se trata.

“Húmus” é uma obra-prima. Sua força fertilizadora tem adubado a terra de onde “brotaram” grandes escritores portugueses do século XX. O que o faz atual e justifica a sua publicação não é apenas seu longo desaparecimento, mas o que o marca e não se pode dissipar: “a voz intérmina”, “a voz do homem, da eternidade que é sua nos instantes suspensos da sua miserável corrupção” (Vergílio Ferreira).

Bem-vinda seja, portanto, a nova edição.

* Luci Ruas é professora associada de Literatura Portuguesa da UFRJ.