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Crítica: Livro de contos de Nei Lopes traz a realidade por quem a conhece

'Nas águas desta baía há muito tempo' une conhecimento de História e seu amor pelo Rio
Nei Lopes, autor de “Nas águas desta baía há muito tempo” Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Nei Lopes, autor de “Nas águas desta baía há muito tempo” Foto: Ana Branco / Agência O Globo

RIO — Nei Lopes é um dos mais expressivos compositores de música brasileira. Em 1987 publicou seu primeiro livro de ficção, “Casos crioulos”. Em 2016 ganhou o Prêmio Jabuti com “Dicionário da história social do samba”, em coautoria com Luiz Antonio Simas.

“Nas águas desta baía há muito tempo” vem confirmar a qualidade de sua ficção. Seu conhecimento de História e seu amor pelo Rio de Janeiro são o ponto de partida destes contos que colocam em primeiro plano personagens anônimos e marginalizados e misturam, em doses precisas, ficção e realidade.

Capa do livro 'Nas águas desta baía há muito tempo', de Nei Lopes Foto: Divulgação
Capa do livro 'Nas águas desta baía há muito tempo', de Nei Lopes Foto: Divulgação

As cenas são descritas com o realismo e a segurança de quem conhece a realidade que está tratando, mas, ao mesmo tempo, a veia poética do autor lhe permite voos de imaginação e fantasia em que, por exemplo, um chicote que vai açoitar o negro transgressor se transforma de repente numa cobra venenosa.

Em quase todos os contos, encontramos referências a acontecimentos históricos de embates e sublevações populares, com muitos tiros de canhão, que funcionam como um pano de fundo para contar histórias líricas e na maioria das vezes comoventes.

O negro Prodígio do Espírito Santo não tinha documento nenhum e, quando o pai o alistou na Marinha para ver se o garoto tomava jeito, ele inventou para si próprio este nome poético e foi em frente. De prodígio em prodígio, tornou-se capaz até de transformar água em vinho e acabou sendo promovido a capitão de corveta.

Os personagens anônimos cruzam suas vidas com figuras conhecidas, como o marinheiro João Cândido da Revolta da Chibata ou o escritor Afonso Henriques de Lima Barreto, que aparece no conto “O oráculo”. Mas nesta narrativa, tão importante quanto o escritor é o Tio Lauro, um negro que dizia ter 118 anos, leu a sorte de Afonso e lhe deixou uma herança mágica.

Lima Barreto também aparece na narrativa “Águas turvas, turbulentas” através de seu pai, João Henriques de Lima Barreto, que atravessa a Baía de Guanabara de barca e se vê tomado por delírios e alucinações.

A tarefa de contar histórias e de inventar não exclui a de informar e, assim, ao longo dos contos, vamos formando uma ideia da participação intensa e pungente dos negros vindos da África que ajudaram a plasmar a nossa cultura e nacionalidade.

“O que importa é a recriação que ele faz disto tudo, numa viagem colorida e movimentada através dos tempos e dos espaços em torno daquela que é a grande protagonista desta obra: a Baía de Guanabara”

Elias Fajardo
Sobre livro de Nei Lopes

“Fuga e contratempo” tem como cenário a Ilha de Paquetá, onde foi realizada a festa de aniversário de Adalberto Roque de Mendonça. Funcionário público subalterno mas músico respeitado, Adalberto reuniu familiares e convidados musicais, entre eles o flautista Alfredo Vianna, o pai de Pixinguinha.

Anacleto de Medeiros, vizinho de Adalberto, não pôde estar presente por ter outros compromissos. A festa produziu um sarau como nunca se viu e que ficou famoso na história da ilha. Adalberto teve grande sucesso, mais tarde estabelecendo-se como editor de música nos Estados Unidos.

“Bento Sem Braço”, o título de um dos contos, era um homem gigantesco, considerado o maioral dos maiorais nas rodas de vagabundagem, capoeiragem e feitiçaria. Bonito e forte, transformou-se numa lenda, e seus serviços de bom reprodutor eram requisitados por vários senhores de escravos. O próprio Imperador quis comprá-lo, mas o dono da fazenda onde ele vivia não quis vender porque ele era seu filho.

Em “A barraca dos impossíveis”, os protagonistas são mulheres e o cenário é a Igreja de Santa Rita, no centro do Rio, na época da Inconfidência Mineira. A escrava Silvéria foi comprada em Minas Gerais e veio para o Rio e sua descendente Rita tornou-se dona de uma barraca que ficou famosa vendendo frutos do mar.

Mas o personagem feminino mais expressivo é “Maria Angu”, que um jornal da época descreveu como “uma amazona do Daomé, figura colossal, desafiando a tudo e a todos com sua formidável estrutura”. Boa de briga, costumava dar surras em vários homens de uma vez e chegou a ter um bordel flutuante.

“O Alferes” gira em torno da enfermeira Eulália Mattoso, mais conhecida como dra. Matosão. Ela é encarregada pelo chefe de polícia do Distrito Federal de investigar uma denúncia de prostituição envolvendo uma menor e acaba descobrindo um outro lado da História.

Marie-Thérèse d’Habsbourg-Lorena, uma francesa conhecida como “Madama”, teve uma vida plena de aventuras no Rio de Janeiro. O conto explora o realismo fantástico e nele a francesa é engolida e vomitada por uma baleia que na verdade era um ator que foi sua grande paixão.

O leitor que tentar descobrir onde estão os limites entre a ficção e a verdade histórica neste livro de Nei Lopes vai se ver em palpos de aranha. Os conflitos e revoltas políticas nem sempre são datados nem explicitados didaticamente, embora estejam sempre presentes e pareçam verossímeis, já que o autor é um grande pesquisador. Mas o que importa na verdade é a recriação que ele faz disto tudo, numa viagem colorida e movimentada através dos tempos e dos espaços em torno daquela que é a grande protagonista desta obra: a Baía de Guanabara.

COTAÇÃO: Ótimo

'Nas águas desta baía há muito tempo'

Autor : Nei Lopes. Editora : Record. Páginas : 272. Preço : R$ 42,90

Elias Fajardo é autor de “Belo como um abismo” (7Letras)