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Crítica: Mais citado do que lido, escritor Robert Musil ganha ótima introdução à sua obra

Editora Carambaia lança coletânea de textos curtos do genial e pouco conhecido autor de 'O homem sem qualidades'
Morto em 1942, Musil mescla ensaio e ficção de maneira única Foto: Reprodução
Morto em 1942, Musil mescla ensaio e ficção de maneira única Foto: Reprodução

RIO — Quando falamos dos grandes nomes do modernismo europeu — James Joyce, Franz Kafka, Marcel Proust, Virginia Woolf — o austríaco Robert Musil (1880-1942) tende a ficar à sombra desses. É um autor mais citado do que lido, talvez porque sua obra-prima, o genial “O homem sem qualidades”, não só tem mais de mil páginas de prosa densa e difícil como ainda ficou inacabada. Sua outra narrativa longa é “O jovem Törless”, estranho e cruel romance de formação que não dá conta da tal genialidade do autor.

Em 2018, dois lançamentos no Brasil oferecem diferentes portas de entrada ao universo de Musil. O primeiro é “Uniões” (Ed. Perspectiva), que reúne duas novelas; agora, a Carambaia publica uma miscelânea de narrativas, ensaios e aforismos, “O papel mata-moscas e outros textos”.

Um cavalo com cócegas

O texto que dá nome a essa coletânea explicita em poucas páginas o que Musil tinha de mais singular: partindo da descrição científica de um objeto comercial — uma tira de papel grudento com veneno —, o austríaco salta para um discurso poético, repleto de metáforas preciosas. A alternância entre o cartesiano e o humano é, em essência, a chave do estilo que emprega em “O homem sem qualidades”, centrado num matemático às voltas com discussões acerca do que são a alma e a moral às vésperas da Grande Guerra.

Mesmo nas doses homeopáticas fornecidas por esta coletânea, é possível contemplar a diversidade dos interesses de Musil. Em outra narrativa-ensaio, ele reflete sobre a humanidade de um cavalo que reage a cócegas; noutro parágrafo isolado, questiona a ideia de que os gênios estariam à frente de seu tempo e defende que estão fortemente vinculados ao zeitgeist , ainda que em uma postura de oposição. Esse texto, por sinal, é de 1935, ou seja, foi redigido durante a ascensão do nazifascismo (que Musil desprezava com veemência). Também nesse período, o autor trabalhava em “O homem sem qualidades”, que oferece uma análise cínica do descompasso entre a aristocracia do Império Austro-Húngaro e a realidade.

O livro ainda traz “Sobre a estupidez”, palestra convertida em ensaio que já tinha sido lançada no Brasil pela Âyiné. No texto, Musil — não à toa chamado de “um escritor mais inteligente que o necessário” por Walter Benjamin — busca definir o termo estupidez a partir de diversos conceitos, tendo em mente as muitas ações irrefletidas que caracterizariam um novo modus operandi anti-intelectual na sociedade do entre-guerras.

O texto que encerra a coletânea, por sua vez, é marcado pela metalinguagem desvairada, em que personagens discutem a obra de Robert Musil... no cérebro do próprio escritor. Ali, o leitor vislumbra teorias possíveis para explicar a poética musiliana, que rejeita construções tradicionais de enredo e sentimentos, vistos como genéricos e impessoais pelo escritor.

Caminho pouco trilhado

“A arte é um ponto intermediário entre capacidade de conceituar e concretude”, defende o personagem do cérebro com vivacidade. Trata-se de um bom resumo da obra do austríaco, que mescla o ensaio e a ficção de maneira única. A forma como desenvolveu o chamado “romance de ideias” em “O homem sem qualidades” inaugurou um caminho pouco trilhado pelos narradores contemporâneos, e ainda há tempo para redescobri-lo.

“O papel mata-moscas e outros textos”

Autor: Robert Musil. Editora: Carambaia. Tradução: Marcelo Backes. Páginas: 180. Preço: R$ 72,90. Cotação: Ótimo

*Antônio Xerxenesky é escritor, tradutor e doutorando em Teoria Literária pela USP