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Crítica: Novo livro da poeta vencedora do prêmio Oceanos questiona olhar cotidiano

A carioca Marília Garcia constrói caderno de anotações digressivas e divertidas no livro ‘Parque das ruínas’
A poeta Marília Garcia, autora de "Parque das Ruínas" Foto: Renato Parada / Divulgação
A poeta Marília Garcia, autora de "Parque das Ruínas" Foto: Renato Parada / Divulgação

‘Parque das ruínas”, o último livro da poeta Marília Garcia, foi impresso com uma pequena tiragem de 300 exemplares. O meu exemplar é o 29º. Está marcado, à caneta, na última página: 029/300. Pode parecer um mero detalhe, mas a informação talvez tenha a sua importância. Primeiro porque a marcação é um gesto único, que não se repete, e me leva a uma conexão íntima com a obra. Segundo porque, na poesia da carioca de 39 anos, vencedora do Prêmio Oceanos em 2018 pelo livro “Câmera lenta”, nenhum pormenor é insignificante. Questionar o olhar, entender melhor o que se viu e, principalmente, o que ainda não se tinha visto. Voltar os olhos outra vez e encontrar o detalhe que se perdeu. Repetir os passos, repetir os gestos, repetir as imagens, repetir as palavras, compará-las, passar tudo numa lupa, num obturador ou em um microscópio — enfim, entender melhor o que se vê. Ou o que ver significa.

Como fez a artista americana Rose-Lynn Fischer, que registrou uma espécie de “atlas temporário” de suas próprias lágrimas ao colocá-las em um microscópio. Como também fizeram o poeta americano Louis Zukofksy, que publicou uma espécie de “teste de poesia”, no qual comparava várias traduções de um mesmo texto procurando lê-los de outros modos; e o poeta francês Emmanuel Hocquard, que se isolou do mundo para observá-lo pelo viés da solidão.

São alguns dos autores cujas práticas poéticas e anseios existenciais Marília menciona ao longo de um texto recheado de fotos e imagens, que pode ser lido tanto como um caderno de anotações quanto um poema-aula, ou ainda como um “poema no tubo de ensaio”. Outra possibilidade seria vê-lo como um poema-performance, já que foi originalmente escrito para ser apresentado em voz alta, junto com projeções de 240 slides, em performances públicas pelo Brasil.

Como lidar com o lugar?

Ao mesmo tempo em que dialoga com seus pares, a poeta testa as suas próprias experiências. “se a gente começa a escrever anotar/ e nomear o que acontece/será que consegue fazer as coisas/ existirem de outro modo?”, ela se pergunta. Durante uma residência na França, em 2015, produz um diário em torno de uma única pergunta (“como lidar com o lugar?”) e de uma única regra. Todos os dias, durante meses, uma fotografia tirada no mesmo lugar e na mesma hora — a Ponte Marie, em Paris, às 10h. É uma busca pelo “infraordinário”: o que se passa todos os dias e volta todos os dias, o banal e o cotidiano, que preenche nossas vidas sem percebermos.

Marília também revisita cartas de amor de um tio-avô que lutou na Segunda Guerra, e vai atrás de velhos cartões postais em um antiquário parisiense. “pergunto se há cartões da ‘época da guerra’/ o funcionário me responde com uma pergunta:/ ‘qual guerra?’/ ‘há muitas’, diz ele ‘a grande guerra?’”. A poeta compara ruínas do passado e do presente e, na última página, confronta a imagem do Museu Nacional inteiro, na litografia de Debret, com a do destruído pelo incêndio de 2018.

No fim, o ponto de partida é o mesmo da chegada: Marília reproduz a mensagem de uma francesa exilada no Rio pela guerra, que nos chega através de um velho postal comprado no antiquário parisiense. “Estou triste mas cheia de confiança e coragem”, diz a fugitiva aos parentes na Europa. Ecos da nossa própria realidade, entre o desespero e a quimera de um Rio devastado pela crise.

Importante lembrar que o livro fica ainda melhor se lido em voz alta, tentando reproduzir o estilo de Marília, uma dicção poética única por aqui. Digressiva e divertida, sem medo de se apoiar em seus labirintos, ela soa às vezes como uma criança atrapalhada, que não se desculpa por pensar demais. E, como toda a criança que habita em nossas profundezas, enxerga a complexidade que o adulto sempre deixa passar.

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PARQUE DAS RUÍNAS

Autora: Marília Garcia

Editora:Luna Parque

Páginas:120

Preço: R$ 35

Cotação: Bom