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Crítica: Novos contos de Luiz Ruffato mostram diversidade do autor na forma e no conteúdo

'A cidade dorme' reúne textos curtíssimos em que capta instantâneos variados da vida
O escritor Luiz Ruffato, que lança novo livro de contos Foto: Tadeu Vilani / Divulgação
O escritor Luiz Ruffato, que lança novo livro de contos Foto: Tadeu Vilani / Divulgação

RIO — "A cidade dorme”, livro de contos mais recente de Luiz Ruffato , poderia ser lido como uma espécie de álbum de fotografias, desses que ficam no fundo do armário tomando poeira e que reúnem cenas de família mais ou menos desimportantes e quase esquecidas, um tanto visíveis mas também um pouco secretas. Isso por dois ou três motivos.

Com poucas exceções, os contos são curtos ou curtíssimos — um deles tem meia página — e se dedicam a captar instantâneos das vidas de personagens diversos, embora a visibilidade das narrativas não se resuma às puras descrições como último recurso realista.

Para usar a boa definição do crítico Karl Erik Schollhammer em texto sobre Ruffato, trata-se de “imagens de pensamento”, porque seriam estilhaçadas (embora nem sempre) e sobretudo assombradas por fantasmas do imaginário, como o medo e a fantasia, obscenidades variadas, a violência e a feiura, quer dizer, camadas e camadas de poeira incrustada na imagem.

Somam-se a isso os desfechos abertos, pelo menos em grande parte dos contos, seja por um desejo que não se realiza (“Minha vida”), uma identidade que não se revela (“O dia em que encontrei meu pai”) ou um destino que não se define (“Destinos”). E os contos, em forma de instantâneo, dedicam-se à existência específica de figuras anônimas, que vivem justamente nas margens do visível, quase sempre trabalhadores pobres — de vendedores de pipoca no interior do país a ajudantes de pedreiros nas cidades maiores. É por isso que muitos desses personagens não são identificados por seus nomes próprios, e sim pelas dinâmicas das relações de trabalho, de camaradagem e, às vezes, também por apelidos afetivos.

E pela própria linguagem que, na proposta do autor, reproduz tais dinâmicas, sendo as marcas de oralidade visíveis tanto em escolhas vocabulares (“poeirama”, “remedeia” etc.) quanto de sintaxe (“Os meninos sempre ‘Aparece não, pai, pode dar problema’, mas o que ainda a perder?”), que no entanto são eventuais e não chegam a se solidificar formalmente. E ainda compondo o álbum de família, uma série de contos recorre ao memorialismo, cujo cenário remete ao interior de Minas onde o autor viveu nos anos 1960.

Como o menino de “Cantos” — que, se não é o melhor jogador de futebol das redondezas, dedica à bola “os melhores recônditos” da memória —, o autor também compõe pequenos “hinos” da infância, com tudo que um hino pode ter: algum heroísmo, certa tentativa de rebuscamento da escrita, e boa dose de ímpeto e derramamento. Nesses casos, aliás, os textos se mostram menos armados — e mais distantes da oralidade — , conduzidos pelos caminhos imprevisíveis de lembranças miúdas e muito próprias, meio confessionais, quase crônicas.

Em “A cidade dorme”, afinal, pela própria característica do livro que reúne textos escritos e reescritos a partir de 2004, quase todos já publicados, o leitor encontrará contos de naturezas diversas, apesar da magreza do volume: alguns antinarrativos, em que cacos de vozes desencontradas formam um painel caótico da cidade; outros por assim dizer mais convencionais, em que predomina um diálogo mais apaziguado com o leitor; outros de natureza política, calcados em referências do presente; e outros memorialísticos, atravessados por um tom saudosista. É um painel diverso, com fotografias variadas, e por isso irregular. Que, por outro lado, dá uma ideia da diversidade temática e formal da literatura do autor.

E a certa altura do livro, no conto “Destinos”, a aproximação entre a linguagem dos contos e a sugestão do álbum de família se confirma. O texto começa com a sugestão de uma fotografia que pudesse — mas não pode — fixar “esse exato instante” que é justamente quando um personagem anônimo vai embora de casa. Eis aí duas imagens que poderiam sintetizar o livro: uma, de alguém que sai do interior atrás de uma vida melhor, sem saber quando volta, se volta, com a sensação de não pertencer a lugar algum, já com saudades de casa, só com a certeza de que está sozinho e que, enquanto isso, todo o resto da cidade dorme; e a outra de quem fica.

“A cidade dorme”

Aautor: Luiz Ruffato

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 128

Preço: R$ 39,90

Cotação: Bom

* Crítico literário e doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)