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Crítica: 'Os fantasmas', de César Aira

Autor narra história sobre preconceito em um prédio de luxo Buenos Aires dos anos 1980

RIO - No século XVIII, o filósofo francês Montesquieu escreveu uma série de cartas fictícias, assinadas por dois persas, Usbek e Rica, os quais, em viagem por Paris, escreviam a seu povo contando as singularidades dos costumes dos franceses. Era, está claro, um texto francês, para franceses, criticando-os pela perspectiva de um povo estrangeiro. Em 1993, o jovem professor e escritor argentino César Aira, num ensaio breve e brilhante chamado “Exotismo”, tirava diversas consequências das “Cartas Persas" de Montesquieu, para pensar no papel do olhar estrangeiro na literatura.

Passados 25 anos, o leitor brasileiro tem agora acesso ao pequeno livro “Os fantasmas” (1990) que parece ter sido uma etapa da reflexão daquele ensaio. O cenário é um prédio de luxo em fase final de construção, na Buenos Aires da segunda metade dos anos 1980. Persas e franceses dão lugar a chilenos e argentinos, em seus núcleos familiares: há abastadas famílias portenhas, com seus arquitetos, decoradores e jardineiros, visitando o imóvel na manhã do último dia do ano; do outro lado, a família de Raúl Viñas, o chileno ilegal, contratado pelo empreendimento para desempenhar a função de zelador, enquanto o edifício está em construção.

A narrativa começa, pois, na manhã de 31 de dezembro e avança até a meia-noite. Ao avanço das horas equivale o desfile de personagens pelas dependências do prédio: operários, famílias e profissionais liberais pela manhã; familiares chilenos à noite; além desses, sempre estão presentes os fantasmas. O ponto de vista do narrador é o mais generoso possível: traz ao leitor, com detalhes, o pensamento de seus personagens, uma deliberada série de estereótipos de toda ordem. Diz o arquiteto Tello: “O pior é que mentem. (...) Referia-se aos pedreiros e, por extensão, ao proletariado em geral. Mentem, mentem e mentem. Até quando dizem a verdade.” E ao comparar pobres e ricos na Argentina: “Tinha descoberto que ambas as classes se pareciam em muitas coisas, e muito especialmente em sua completa ausência de delicadeza quando se tratava do dinheiro” (p. 14). Entre os chilenos, destacam-se duas mulheres, a esposa do zelador, Elisa Vicuña, e sua filha, Patricia. Elisa acredita que o marido deveria ter permanecido no Chile (sob a ditadura de Pinochet), que a filha deveria se apaixonar, que o marido, como “os bêbados em geral, tinha uma resistência superior” e que ela “gostava de se sentir protegida por esse vigor sobre-humano” (p. 80).

Assim, o convívio, o confronto ou a coexistência no espaço limitado do edifício entre chilenos e argentinos, pobres e ricos, jovens e velhos, descortina ante o leitor uma versão especial das cartas persas, quase de fábula, como chega a confessar a certa altura Elisa à filha: “Eu te falo de argentinos e chilenos, garotinha, para me fazer entender, como nas fábulas se fala de animais” (p. 150). Entre preconceitos e lugares comuns, há algo que se descortina sobre cada um dos países. Patri, a filha adolescente dos migrantes, é a personagem dissonante, desajustada que, de algum modo, busca seu lugar em meio à equação irresoluta do estrangeiro. É aquela que tem sonhos que permitem ao narrador dar vazão aos devaneios intelectuais que não cabem no universo dos demais personagens, como na discussão — quase ensaio — sobre a arquitetura e a literatura, e logo sobre a frivolidade.

É, enfim, um livro instigante de Aira, o qual, infelizmente, chega ao Brasil sem a mesma fluência do anterior, “Como me tornei monja”, em grande medida pelo problemático trabalho editorial. A equipe de tradução comete erros primários, e a língua portuguesa é tratada como estrangeira: a sintaxe do romance é inverossímil: “Pois sim, qualquer dia destes pesco uma pneumonia. Esta mocinha me faz matar de rir” (p. 93); há escolhas de vocabulário injustificáveis, como “agulhas do relógio” (p. 103) ao invés de “ponteiros”, e também decisões grotescas como a referência aos genitais de um garoto: em vez de se falar em piupiu, pipi, passarinho, nos deparamos com “pirulito” (p. 59). Nada mais distante da tradução primorosa do livro anterior, que ficara a cargo de Angélica Freitas.

Wilson Alves-Bezerra é professor da UFSCar e autor de “O pau do Brasil" (Urutau)