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Crítica: ‘Pepitas brasileiras’ oferece panorama condensado dos heróis negros

Jean-Yves Loude nos empresta a visão ‘de fora’, de estrangeiro, sem ser brasilianista

Capa de ‘Pepitas brasileiras’, de Jean-Yves Loude
Foto: Divulgação
Capa de ‘Pepitas brasileiras’, de Jean-Yves Loude Foto: Divulgação

RIO — São inúmeras as tentativas de se contar a história da presença do negro no Brasil. Cito duas delas, de muito êxito, que marcaram um momento importante para conhecimento do passado brasileiro: nos anos 1980, Emanoel Araújo trouxe sua experiência com a edição de “A mão afro-brasileira”, marco desse processo, seguido por Schuma Schumaher, com seu brilhante “Mulheres negras do Brasil”. Nesse contexto, acrescento a grande contribuição de Nei Lopes, na monumental “Enciclopédia brasileira da diáspora africana” e, ilustrativamente, George Ermakoff quando faz resgate importantíssimo com o esplêndido “O negro na fotografia brasileira do século XIX”.

Todas essas obras procuram contar a história da presença africana entre nós, do ponto de vista não apenas da escravidão, mas também da arte, da religião, dos feitos, bem sucedidos ou não, de cidadãos negros e negras. Em “Pepitas brasileiras”, Jean-Yves Loude nos empresta a visão “de fora”, de estrangeiro, sem ser brasilianista, sobre a história da herança deixada por africanos ou seus descendentes, os “afro-brasileiros”, nesse grande solo brasileiro.

Com a precisa fidelidade de etnólogo francês, Loude percorreu cinco mil quilômetros, entre o Maranhão e o Rio de Janeiro, atrás das chamadas “pepitas brasileiras”. É interessante observar que no curso da leitura do seu texto que se apresenta amena, escorreita, e orientada na forma de diálogo com o leitor, Loude vai construindo uma narrativa que se baseia em fatos narrados por terceiros, pesquisadores ou estudiosos, o que diferencia, frontalmente, "Pepitas brasileiras" das obras de Araújo, Lopes, Schumaher e Ermakoff, embora a comparação seja desnecessária.

O brasileiro mais comum, com acesso à universidade, em especial a pública, sobretudo os chamados de “cotistas”, tem consciência sobre o passado escravista brasileiro, bem como das atrocidades que foi a escravidão, a invisibilidade, exclusão e o genocídio oficializado da população negra, entrementes a mais jovem.

Portanto esse é um tema, e Loude sabe disso, bastante polêmico e controverso. Sua obra, pelo seu tom didático, serve como uma espécie de “passaporte” para os iniciados, e não só negros, é claro, pois para cumprir sua função universal, o livro deve ser dirigido para todas as classes e gostos.

No caso de “Pepitas brasileiras”, o autor, ao narrar as histórias das regiões por onde passa, e falar dos personagens e personalidades que vai conhecendo pelo longo caminho que percorre, capta não só as experiências vividas por cada um, no presente ou no passado, mas carrega nas tintas sobre as suas próprias experiências — que nos remete a pensar na problemática tanto da diversidade, quanto da desigualdade do Brasil.

Mas em dado momento, ler sobre o “Tambor de Crioulas Catarina Mina”, no torrão maranhense, sobre o “Cais do Valongo” ou o “Cemitério dos Pretos Novos”, na cidade carioca, ou, ainda, sobre ilustres figuras como a do fotógrafo Januário Garcia, a primeira romancista negra Maria Firmina dos Reis, os líderes Chico Rei, Negro Cosme e Luiza Mahin, mãe guerreira do poeta e abolicionista Luiz Gama, é um ótimo e atrativo lenitivo.

“Pepitas brasileiras” é um belo panorama condensado sobre a história “dos heróis negros do país”, contada no modelo de uma narrativa leve, beirando ao romance histórico. Tirando, em alguns casos, o excesso de descrição, sobretudo as pessoais, bem como informações não condizentes com a atualidade histórica, tudo flui. Mas dizer ainda hoje que o poeta catarinense Cruz e Sousa (1861-98), filho de escravos, virou estudante e dá mostras de uma capacidade intelectual fora do comum, graças à “ajuda do proprietário dos seus senhores”, é subestimar as petições escritas a rogo pelo pai do poeta ou os mais recentes biógrafos do maior representante brasileiro do simbolismo mundial.

Sem falar que algumas biografias, como a do próprio Cruz e Sousa, estão descritas de forma resumida e incompleta, enquanto outras, contemporâneas, e de controvertida importância, recebem um apuro maior, o que deixa a entender que as chamadas “pepitas” precisam ser melhor trabalhadas. E o livro também perde a oportunidade de resgatar, por onde passou o autor, histórias de personalidades como André Rebouças, Gonçalves Dias, Donga, Cartola, Lima Barreto, entre tantos outros.

Mas, como já disse, tirando esses senões, a obra é uma excelente oportunidade de rever histórias que há muito não são contadas, nem em livros ou programas de televisão. E ainda há tempo de Loude, ajudado em muito por seus muitos amigos, transformar esse livro numa referência, e não só para os brasileiros.

Cotação: bom

*Tom Farias é jornalista e escritor, autor de "José do Patrocínio: a imorredoura cor do bronze"