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Crítica: o realismo insólito de um destaque da nova literatura argentina

Conhecida pelos contos, Samantha Schweblin lança novela ‘Distância de resgate’
PV Rio de Janeiro (RJ) 03/04/2012 Samanta Schweblin, escritora argentina Foto Divulgação Foto: Agência O Globo
PV Rio de Janeiro (RJ) 03/04/2012 Samanta Schweblin, escritora argentina Foto Divulgação Foto: Agência O Globo

RIO - “São como vermes.” A frase vem em itálico e abre o livro “Distância de resgate”, da argentina Samanta Schweblin. É parte de um extenso diálogo que constitui inteiramente a estrutura narrativa da novela de pouco mais de 140 páginas. Tudo é estranho nesse início, apresentando e acumulando uma tensão que seguirá até o fim.

As imagens que surgem na conversa estão ali como se para atrapalhar uma história secreta: um jardim; uma xícara largada ao pé da espreguiçadeira; sandálias de dedos nas escadas da piscina; biquíni dourado, protetor solar, limonada; um cigarro preso nos lábios. “Onde fica o cinzeiro nesse carro?”

Aos poucos, sem que a tensão diminua — ao contrário, o mistério só aumenta —, os personagens, o cenário e a situação que os envolve vão se delineando. Somos apresentados a Amanda, mãe de uma garotinha chamada Nina. Sabemos que ela conversa com David, filho de Carla, uma amiga. Estamos numa zona rural, perto de uma criação de cavalos de corrida destinados aos prados de Palermo e San Isidro. Os animais, e também as pessoas, começam a cair doentes em circunstâncias obscuras. Quem sabe será a água do riacho?

SUSPENSE PRENDE LEITORES

Os leitores ficamos curiosos, atrás de pistas, informações, verdades que nos são camufladas ou adiadas. O que nos prende é esse elemento essencial ao cinema e a certas peças teatrais: o suspense. Amanda é sempre instigada a continuar seu relato e a não esquecer os detalhes. “Estamos procurando o ponto exato”, repete David a todo momento. Envolvidos pela conversa deles, seguimos querendo descobrir o que vai acontecer. No sentido da urgência, a novela de Samanta Schweblin é um artefato perfeito.

Nascida em 1978, Samanta publicou sobretudo contos — “El Núcleo del disturbio” (2002), “Pássaros na boca” (de 2009, que saiu no Brasil pela Benvirá), “Siete casas vacías” (2015) — e logo foi identificada no rico filão da literatura fantástica argentina, ao lado de Bioy Casares e Julio Cortázar. São histórias que, a princípio, narram situações cotidianas; aos poucos, contudo, assumem contornos insólitos, e mesmo sobrenaturais e aterrorizantes. O diferencial é o ambiente, sempre realista, e a escrita precisa e sóbria — como se estivéssemos lendo um duro e sujo Raymond Carver.

Lançado originalmente em 2014 e vencedor do Prêmio Tigre Juan do ano seguinte, “Distância de resgate” não foge ao esquema. E quase se pode apostar que foi um conto que cresceu demais — sem que isso tivesse interferido em sua harmonia. O título se refere à “distância variável que me separa de minha filha, e passo a metade do dia fazendo esse cálculo, embora sempre arrisque mais do que deveria”.

É uma história de separação e perda, a qual se revela na regressão hipnótica a que se submete a personagem. Daí o acerto da estrutura em diálogo que aponta um inimigo terrível, mas invisível: os agrotóxicos. (Quanta diferença de certos livros e filmes de terror, dos quais esguicha sangue.)

Há um elemento paranormal: uma mulher que vive numa casa verde e tenta curar os doentes fazendo uma espécie de transferência de almas, ou expurgo do Coisa Ruim. Mas o que Samanta Schweblin mostra é bem real: os campos de soja, os riachos entre as terras secas, a ausência do gado e a ameaça dos galões das fábricas. Passa-se na Argentina. Mas bem podia ser no Brasil.

Alvaro Costa e Silva é jornalista