Cultura Livros

De Pero Vaz de Caminha a Michel Temer e Chico Buarque, livro reúne cartas célebres

'Cartas brasileiras' faz parte de nicho que ganha fôlego nas livrarias
Carta de Albert Einstein ao Comitê do Prêmio Nobel em 1925, recomendando Marechal Rondon para o nobel da paz. Registro é reproduzido em "Cartas brasileiras" Foto: The Norwegian Nobel Committee Archives, the Norwegian
Nobel Institute, Oslo.
Carta de Albert Einstein ao Comitê do Prêmio Nobel em 1925, recomendando Marechal Rondon para o nobel da paz. Registro é reproduzido em "Cartas brasileiras" Foto: The Norwegian Nobel Committee Archives, the Norwegian Nobel Institute, Oslo.

RIO — Em 2 de julho de 1959, uma aluna do equivalente ao 9º ano do ensino fundamental escreve ao então presidente, Juscelino Kubitscheck. Após explicar que faria um trabalho sobre a nova capital do país e relatar a dificuldade em encontrar material de pesquisa, a garota é firme em seu pedido: “Peço-lhe então que me envie vistas e tudo mais que o senhor tiver de interessante e concreto sobre Brasília”.

A carta singela, de letra cursiva em papel de caderno, é exemplo de um tipo de texto que já não é tão presente no cotidiano, mas nem por isso deixa de ter valor literário, emocional e histórico.

A chamada literatura epistolar, que dá conta desses escritos, é assunto que ganha fôlego no país, com os livros lançados neste mês, “Os meus romanos” (Paz e Terra) e “Cartas brasileiras” (Companhia das Letras), este último incluindo a carta à JK, e o projeto Correio IMS, que disponibiliza diversas missivas na internet.

“Cartas pessoais abrem uma fresta para a intimidade, são um meio único de revelar como as pessoas se relacionam com o mundo. Elas “criam um clima” no tempo e espaço”

Sérgio Rodrigues
Organizador de "Cartas brasileiras"

Organizado pelo escritor e jornalista Sérgio Rodrigues, “Cartas brasileiras” reúne, em um grande panorama do país, 81 cartas “históricas, políticas, célebres, hilárias e inesquecíveis”.

A seleção contempla áreas como literatura, música e ciência e inclui desde o texto que Pero Vaz de Caminha escreve ao rei de Portugal sobre a recém-encontrada terra brasilis até a carta aberta em que o então vice-presidente Michel Temer rompe relações com Dilma Rousseff, em dezembro de 2015.

Entre os dois extremos temporais, uma profusão de missivas em que se destaca a intimidade presente nesse tipo de escrita, como afirma Sérgio.

— Cartas pessoais abrem uma fresta para a intimidade, são um meio único de revelar como as pessoas se relacionam com o mundo. Elas “criam um clima” no tempo e espaço, pois demoram a chegar e percorrem certa distância. É um instrumento valiosíssimo para conhecermos os outros.

Os exemplos de intimidade revelada são regra na edição. Em um deles, Vinicius de Moraes, autor de "Valsinha", escreve a Chico Buarque em 1971 recomendando mudanças na letra da canção, obra do jovem letrista.

Em outra correspondência, Mário de Andrade, dos maiores epistológrafos brasileiros, escreve ao jovem Fernando Sabino, em 1942, alertando sobre a difícil carreira de escritor: "Ora, Fernando, pra aguentar com um destino desses, antes de mais nada, é preciso ter uma ambição enorme, uma paciência enraivecida".

Outras missivas incluem Lygia Clark escrevendo a Hélio Oiticica, Elis Regina ao filho bebê e até um texto endereçado à seção de cartas do GLOBO, em que um leitor reclama não encontrar roupas de tamanho grande nas lojas.

A ideia de reunir apenas cartas nacionais veio depois do sucesso de “Cartas extraordinárias”, livro publicado pela mesma editora em 2014 no qual cartas célebres do mundo todo são apresentadas pelo organizador Shaun Usher.

O projeto de fazer um livro-mosaico que reunisse tanto pessoas célebres quanto anônimas, segundo Sérgio, foi uma decisão para que o resultado fosse o mais eclético possível.

Carta sem data de Paulo Leminski para Régis Bonvicino, provavelmente de 1979. Foto: Cartas e alguma critica. Org. de Regis Bonvicino. Sao Paulo: Ed. 34, 1999, pp. 157‑8. Cortesia da editora.
Carta sem data de Paulo Leminski para Régis Bonvicino, provavelmente de 1979. Foto: Cartas e alguma critica. Org. de Regis Bonvicino. Sao Paulo: Ed. 34, 1999, pp. 157‑8. Cortesia da editora.

"IMAGINÁRIO AFETIVO"

Também neste mês, a editora Paz & Terra reedita um livro de correspondências que, apesar de esgotado há alguns anos, vivia no "imaginário afetivo" dos leitores, como coloca a editora-executiva Andreia Amaral.

"Os meus romanos" acompanha Ina von Binzer (sob o pseudônimo de Ulla von Eck), educadora alemã que chega ao brasil em 1881 para trabalhar como preceptora de crianças da elite cafeicultora. Descrevendo os trópicos a uma amiga que permanece na Alemanha, a autora faz uma grande crônica sobre os últimos anos de escravidão no país.

Bastante utilizadas em cursos de pedagogia, as missivas de Binzer são também um importante registro histórico, além de possuírem um tom pessoal que se aproxima do leitor, aspecto comum aos livros de correspondências mais consagrados. Para Andreia, esse tipo de produto é uma tendência no mercado editorial por um motivo simples.

— São livros bastante pessoais, que expõem o autor de uma forma que só eles conseguem. Um gênero que costuma dar certo é biografia, as pessoas têm muito interesse em saber com detalhes da vida dos outros. Livros de memórias, de correspondências e diários fazem parte desse filão, e a tendência é que aumentem. Se até agora isso não aconteceu de vez no país, acredito que seja por conta da dificuldade em encontrar esse material em acervos, mas as coisas aos poucos têm mudado.

É o que também pensa o gerente editorial da Global Editora, Gustavo Henrique Tuna. Com três livros de correspondências no catálogo focado em literatura brasileira e portuguesa, a editora também vem apostando nesse nicho — em maio, lançou o volume "Cartas provincianas" , no qual Manuel Bandeira e Gilberto Freyre conversam em dezenas de cartas entre o Rio de Janeiro e o Recife.

Tanto Freyre quanto "Flag", como o apelidou o amigo, aparecem como bons amigos e, ao mesmo tempo em que podem falar sobre assuntos mais sérios, sobra espaço para o bom-humor.

—  Há uma curiosidade pela vida cotidiana dos autores que, de certa forma, impulsiona a publicação de suas cartas. É como se a leitura das cartas fossem fragmentos de um diário que não foi pensado como tal. É um nicho ainda sub-explorado no Brasil que, certamente, tende a crescer ainda mais – diz Gustavo.

Carta em que o poeta Torquato Neto pede em casamento a artista plástica Ana Duarte está reproduzida em "Cartas brasileiras" (Companhia das Letras) Foto: Acervo Artístico Torquato Neto
Carta em que o poeta Torquato Neto pede em casamento a artista plástica Ana Duarte está reproduzida em "Cartas brasileiras" (Companhia das Letras) Foto: Acervo Artístico Torquato Neto

CORREIO IMS

Mas não é só com a publicação de livros que a literatura epistolar está representada no país. Há dois anos, o Correio IMS, iniciativa do Instituto Moreira Salles, publica semanalmente cartas e textos relacionados ao nicho.

Com a própria instituição sendo responsável pelos arquivos de escritores como Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara Resende e Clarice Lispector, o que garante bastante conteúdo, são realizadas parcerias com outros acervos, o que já garantiu a publicação de mais de 200 cartas.

Estão reproduzidas no site, por exemplo, a famosa “Carta de separação à garrafa de Uísque”, de Paulo Mendes Campos a Otto Lara, e “Caymmi, irresistível”, em que o compositor escreve à Jorge Amado em 1976 sobre música e seu cotidiano.

Os missivistas reunidos, que também incluem Rachel de Queiroz, Glauber Rocha e Fernanda Montenegro, já são 192. No blog, artigos tratam da literatura epistolar em diferentes formatos, seja em séries, como “Cartas na Pintura”, ou em textos soltos, como o que a idealizadora do projeto, Elvia Bezerra, escreve sobre a correspondência entre Borís Pasternak, Marina Tsivietáieva e Rilke na década de 1920.

— Não se trata de uma retomada do gênero, ele já tem uma importância imensa. Há, sim, uma preocupação de reunir essas cartas, e aí entra a disponibilização delas online e a edição em livros.

No entanto, o trabalho de seleção, edição e publicação dessas cartas, segundo Elvia, está longe no Brasil de atingir um grau que seja coerente com sua importância. Ressaltando a intimidade desses textos, ela afirma:

— Há muita coisa ainda a ser publicada. As cartas vêm para revelar, e é preciso acabar com o preconceito ainda existente de que esse trabalho é desimportante.