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Diários de Kafka parecem avisar: 'gênio trabalhando'

Em suas anotações cotidianas, autor de ‘A metamorfose’ exercita desconforto e autoironia que fizeram dele um dos maiores nomes do século XX
Franz Kafka aos 17 anos, em 1910, um ano após iniciar seus diários Foto: Reprodução
Franz Kafka aos 17 anos, em 1910, um ano após iniciar seus diários Foto: Reprodução

Nascido em Praga em 1883, Franz Kafka , começou a escrever em seu diário em 1909 e parou em 1923, um ano antes de morrer de tuberculose em um sanatório na pequena Klosterneuburg, perto de Viena. Ainda que a edição da L&PM ofereça apenas o período que vai de 1909 a 1912, é possível ter uma boa ideia do que se passava na cabeça do autor, um dos grandes do século XX ao unir o real e o fantástico.

Um aspecto importante é o volume do material escrito, considerando que o autor de “A metamorfose” e “O processo” pouco publicou em vida — e pediu ao amigo mais próximo, Max Brod, que destruísse seus inéditos após sua morte. Os registros desses anos iniciais ocupam quase 300 páginas e permitem o acompanhamento privilegiado da gestação de uma obra marcada por dúvida, hesitação e autoironia.

O que de imediato chama a atenção nos diários de Kafka é a permanência do estilo do escritor, e não o surgimento de uma esperada dicção mais íntima, mais relaxada ou casual. Mesmo quando relata os fatos mais corriqueiros, um lanche ou uma caminhada, Kafka invariavelmente introduz o desconforto característico que marca sua ficção.

Entre passeios e palestras

Sobre o passeio com um primo, por exemplo, ele escreve: “Andei com ele durante duas horas atrás da estação, pedia-lhe de tempos em tempos para que me liberasse, eu tinha as mãos entrelaçadas de impaciência e prestava a menor atenção possível”. Ou o momento de acordar para mais um dia de trabalho: “Despertar numa fria manhã de outono com luz amarelada. Atravessar a janela quase fechada e, ainda diante das vidraças, antes de cair, pairar, os braços abertos, com a barriga arqueada e as pernas dobradas para trás, como as figuras de proa dos navios de tempos antigos.”

O trabalho é um tópico fundamental para Kafka, apresentado como entidade que tanto liberta (ao lhe dar sustento e distração diária) quanto oprime (nos momentos em que o afasta de sua atividade criativa da escrita).

O diário nos mostra como Kafka vivia atento aos detalhes do cotidiano e como essa observação constante alimentava sua ficção. Surpreende a frequência com que Kafka vai ao teatro e também a quantidade de páginas do diário que dedica à exposição e análise de tramas de peças e detalhes cenográficos. É instrutivo cotejar o diário com suas ficções, percebendo como sua construção do espaço, dos diálogos e das interações é devedora dessa sua convivência direta com a cena teatral de Praga no início do século XX.

Um dos problemas latentes no diário de Kafka (e também em sua obra) é a exposição do corpo individual diante do olho social e seu julgamento. Daí a ênfase, no diário, na vida dos atores e seu interesse no relato das performances de profissionais bem-sucedidos e, principalmente, de palestrantes.

Muitas das partes mais elaboradas do diário envolvem o registro do contato com oradores carismáticos. Kafka mede a si mesmo e a seus personagens a partir do exemplo — vocal, corporal, aurático — desses indivíduos sedutores e estranhos.

Mas a principal preocupação de Kafka é com a realização e permanência de sua obra ficcional. “Não posso ousar nada para mim enquanto não tiver realizado nenhum grande trabalho que me satisfaça plenamente”, anota ele em dezembro de 1911. E no dia seguinte: “Grande desejo de expulsar inteiramente de mim pela escrita todo o meu estado de amedrontamento”.

A precisão quase milagrosa das parábolas de Kafka fica mais compreensível quando se percebe, nos diários, o nível de seu empenho e comprometimento com a atividade da escrita.