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Direitos autorais de ‘O diário de Anne Frank’ geram polêmica

No ano em que a morte da adolescente judia completa 70 anos, best-seller vira impasse mundial

Anne Frank em foto não datada
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Reprodução
Anne Frank em foto não datada Foto: Reprodução

RIO — Todos os anos, o mercado editorial saliva à espera da lista de obras literárias que caem em domínio público, o que acontece sempre no dia 1º de janeiro seguinte ao aniversário de 70 anos da morte do autor, segundo a legislação da maioria dos países. É quando as editoras podem valer-se dos textos originais para fazer novas traduções, adaptações, remixes — sem pedir a autorização e sem pagar por isso. Este ano, por exemplo, entrou em domínio público “O pequeno príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry — e não por acaso o mundo todo viu pipocar novas versões e produtos do principezinho, suas roseiras e asteroides.

No dia 1° de janeiro de 2016, cai em domínio público outra obra suculenta comercialmente: a versão original do “Diário de Anne Frank”. Com mais de 35 milhões de exemplares vendidos no planeta, a primeira edição do livro foi publicada em 1947 pelo pai da adolescente judia, Otto Frank, morto em 1980, logo depois de encontrar e reunir os diários escritos por Anne num esconderijo em Amsterdã, enquanto fugia da perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Como Anne morreu em 1945, no campo de concentração de Bergen-Belsen, e se o “Diário de Anne Frank” foi escrito por ela, a informação parece inconteste, certo? Não necessariamente.

Quem contesta é a Anne Frank Fonds — fundação suíça criada por Otto Frank em 1963 para administrar os direitos autorais da obra. A instituição causou polêmica ao divulgar nota, este ano, no jornal holandês “NRC Handelsblad”, afirmando que o “Diário de Anne Frank” não entrará em domínio público em 2016 porque o pai da autora seria coautor da obra; como Otto Frank morreu em 1980, ela só estaria “livre” comercialmente em 2051.

Para entender a intrincada relação de autoria, que se tornou um case mundial para discussões sobre domínio público, primeiro é preciso saber que existem quatro versões do diário: a chamada versão A, que são os escritos originais de Anne, enquanto esteve escondida no esconderijo da família, em Amsterdã, na Holanda; a versão B, reescrita pela própria Anne depois de um chamado ouvido no rádio enquanto estava no esconderijo, em março de 1944, quando o então ministro holandês Gerrit Bolkestein conclamou a população a guardar documentos sobre a guerra. Foi quando a jovem entendeu que o que escrevia poderia de fato virar uma publicação futura, e passou a reescrever, modificando nomes e referências, incluindo trechos novos e abreviando outros.

Existe ainda a versão C, que é a primeira reescrita por Otto para a publicação do “Diário...”, em 1947, quando ele excluiu trechos considerados privados. E há ainda a versão D, de 1991, feita pela pesquisadora Mirjam Pressler, sob autorização da Anne Frank Fonds, somando trechos das versões A e B à versão C.

Representante do escritório Silveiro Advogados, contratado pela Anne Frank Fonds este ano para garantir que nenhuma versão do livro apareça sem pagar os devidos direitos no Brasil, Rodrigo Azevedo detalhou em mensagem ao GLOBO o posicionamento da instituição: “Indiscutivelmente, Anne Frank detém a autoria exclusiva das versões A e B do ‘Diário...’ Porém, mais complexa é a circunstância que envolve a criação das versões C e D, sendo esta última justamente a obra que atualmente se encontra em circulação. Tanto na versão C quanto na D, o processo criativo foi diretamente influenciado por novas pessoas, gerando um resultado final inquestionavelmente diverso. Assim, cabe verificar se seriam essas modificações e rearranjos suficientes para qualificar as versões C e D como novas obras protegidas, o que, naturalmente, conduziria a diferentes prazos de duração dos direitos patrimoniais de autor, notadamente sabendo-se que Otto Frank faleceu apenas em 1980 e que Mirjam Pressler ainda vive. Desse modo, a versão atualmente em circulação (D), bem como o texto organizado por Otto Frank (C), na condição de obras derivadas, possuem prazos de proteção autoral independentes em relação aos textos originais, os quais seguirão vigentes ainda por décadas”.

O imbróglio é tema de discussão entre especialistas do direito autoral por todo o mundo, em escritórios e universidades. O GLOBO consultou dois especialistas: o advogado brasileiro Sérgio Branco e a advogada holandesa Emilie Kannekens, que faz mestrado sobre a questão.