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Djaimilia Pereira de Almeida aborda cabelos crespos e questões de identidade em ficção

Escritora angolana participa da Flip 2017
A escritora Djaimilia Pereira de Almeida Foto: Ana Branco / O Globo
A escritora Djaimilia Pereira de Almeida Foto: Ana Branco / O Globo

PARATY — Alguns anos atrás, Djaimilia Pereira de Almeida se surpreendeu com vídeos de mulheres negras que apresentavam no YouTube dicas de beleza, fórmulas de penteado e histórias sobre suas odisseias estéticas. Sob impacto desses relatos, a escritora angolana, que se mudou para Portugal ainda criança, começou a trabalhar no que seria o seu livro de estreia, “Esse cabelo” (Leya), mescla de ficção, ensaio e memória que a autora lança nesta edição da Flip.

— Eu apercebi-me que o drama cômico que eu tinha com meu cabelo crespo também era vivido por muitas raparigas. Vi que não estava sozinha. E quis partilhar com elas a minha experiência, estabelecer esse contato. Um livro seria minha maneira para entrar na conversa. Se meu texto é uma tragicomédia, é porque essas meninas me ensinaram a rir do meu cabelo — conta Djaimilia, que participa hoje da mesa “Ponto de fuga”, no Auditório da Matriz, ao lado da carioca Carol Rodrigues e da gaúcha Natalia Borges Polesso.

A narrativa, leve e bem-humorada, mas sem abrir mão de um flerte com a erudição, acompanha a trajetória de Mila, uma mulher nascida em Luanda que vai para Portugal aos 3 anos, “particularmente despenteada”, onde é criada no subúrbio lisboeta de Oeiras. Através da relação tempestuosa que tem com seu cabelo, a narradora parte de sua vivência como uma mulher imigrante africana num país europeu em busca de sua identidade. Qualquer semelhança com a biografia da escritora não é mera coincidência.

— As suas geografias são retiradas da minha vida. Alguns episódios também são análogos, assim como um lado da sensibilidade dela, da sua percepção do mundo, que é muito próxima da minha. Mas há diferenças. Ela é mais sombria — admite Djaimilia, que é doutora em teoria da literatura pela Universidade de Lisboa.

Segundo a autora, há uma “relação fundamental” entre o seu cabelo e a sua formação de identidade:

— O fato de ter vivido ao longo de tanto tempo carregando um aspecto do meu corpo com o qual eu não sabia o que fazer me moldou de uma forma íntima. É uma característica que não sabemos como tratar e vemos como um problema. “Esse cabelo” tem um pouco a ver com essa dicotomia. É um mundo dominado por padrões de beleza ocidentais. Há uma pressão exercida sobre quem tem um aspecto diferente. Para muitas raparigas, essa pressão passa a ser interiorizada. E meninas de cabelos crespos passam a achar que têm um cabelo ruim. Torna-se uma questão de conflito interno — afirma.

Nos salões de beleza, onde Mila/Djaimilia enfrenta tentativas de “retraimento da minha exuberância natural”, a autora passou por muitos constrangimentos. Mas também aprendeu bastante coisa.

— Nunca me senti à vontade num salão. Mas é um lugar com fontes inesgotáveis de interesse literário, com suas conversas, com uma competição velada entre as mulheres — observa Djaimilia.

A escritora, que afirma ter tido “uma vida normal de portuguesa de classe média”, se diz chocada com o crescente sentimento de xenofobia que toma a Europa:

— É uma questão que me perturba muito. Essa onda de populismo e intolerância de um discurso absolutamente repulsivo sobre as minorias é assustadora. Há uma mitologia de brandos costumes em torno de Portugal enquanto ex-colonizador, de que seria um caso exemplar em relação ao racismo e à assimilação de minorias. Claro que nem tudo é tão simples e que isso não é verdade. Tive experiências agradáveis e outras nem tanto como uma rapariga negra por aqui. Mas Portugal é o país que identifico como meu.