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'É o meu livro mais engenhoso', diz Jennifer Egan sobre ‘Praia de Manhattan’

Vencedora do Pulitzer mescla literatura policial, história e aventura
A escritora Jennifer Egan Foto: MARCELLO MENCARINI / Leemage
A escritora Jennifer Egan Foto: MARCELLO MENCARINI / Leemage

RIO — Na geografia muito particular de Nova York, Manhattan Beach, apesar do nome, fica no limite meridional do Brooklyn, às margens do gélido Atlântico. Com significativa população judaica ortodoxa e de origem russa, é dos poucos enclaves republicanos em uma cidade ostensivamente democrata. Para se chegar à Manhattan propriamente dita é preciso encarar pelo menos uma hora no metrô. Pois, no mais recente livro de Jennifer Egan, batizado de “Praia de Manhattan” pela importância do ermo bairro no início da trama, nada é o que parece ser.

O leitor familiarizado com os jogos pós-modernos de “A visita cruel do tempo” (que deu à escritora de 55 anos o prêmio Pulitzer em 2011) , se depara agora com um mix de literatura policial, escavação histórica e aventura ao mar na tradição de “Moby dick”.

“Adoro mesclar novas maneiras de contar histórias com as mais clássicas. Se algum crítico disser que ‘A praia de Manhattan’ é muito cinematográfico, noir, não vejo problema”

Jennifer Egan
Escritora

“De certa forma, é o meu livro mais engenhoso. Não foi fácil alinhar os três gêneros e conduzir a narrativa pelos olhos da mesma personagem”, diz a escritora, em entrevista ao GLOBO, por telefone.

No centro do bate-papo, feminismo, a ascensão global dos EUA e a decadência — moral e de influência— representada pela Era Trump, com seus reflexos na produção cultural do país e da própria escritora. Leia, a seguir, as principais declarações de Jennifer.

História - Ah, se eu fosse marinheira

“Queria escrever sobre a área portuária de Nova York, que, há duas décadas, começava a ensaiar o que seria a mais recente reviravolta urbana da cidade. Até então, você poderia, como eu, viver anos a fio aqui e jamais se tocar de que a cidade tem, bem, um porto. Mas durante a Segunda Guerra ele foi o centro da Grande Maçã, parecia uma rodovia, com engarrafamentos de navios. O esforço de guerra também foi fundamental para inserir a mulher de forma ampla na indústria. Ao mesmo tempo, os ataques terroristas do 11 de Setembro me fizeram refletir sobre uma Nova York contaminada pelo medo. Pronto: voltaria ao passado para tratar das reinvenções da metrópole, do lugar da mulher na sociedade, das consequências do discurso do pânico e do quanto mudamos — ou não — de lá pra cá.”

Atualidades - Feminismo e mea culpa

“Comecei a escrever o livro em 2012. Meus questionamentos sobre o poder feminino na sociedade americana vêm de muito antes do #metoo, mas, curiosamente, temia que talvez essas questões já tivessem sido, ao menos no universo ao meu redor, respondidas. Não estaria tratando de tema muito obscuro para as novas gerações? Como explicar aos leitores do século XXI que, nos primeiros dois anos de participação americana na Segunda Guerra, as portuárias eram proibidas de entrar nos navios, por medo de que abusos ocorressem, de que os homens não conseguissem se controlar? Parecia meio ridículo. Infelizmente, o presente mostrou que eu estava enganada.”

“Não é exagero afirmar que vivemos hoje, aqui, um ‘estado de horror’. Com Trump, sinto-me como se estivesse dentro de um carro, com portas fechadas, guiado por um motorista lunático.”

Jennifer Egan
Escritora

Escrever - Pelo bosque da ficção

“‘A visita cruel do tempo’, que se divide em 13 capítulos, foi diretamente influenciado pela explosão das séries de TV. Aquele livro tem dois pais: ‘Os Sopranos’ e ‘Em busca do tempo perdido’, de Proust. Adoro mesclar novas maneiras de contar histórias com as mais clássicas. Se algum crítico disser que ‘A praia de Manhattan’ é muito cinematográfico, noir, não vejo problema. Para ser honesta, experimentei narrativas pouco ortodoxas enquanto o escrevia, mas não deu certo. Percebi que não era mais o momento de investir em fragmentação ou mesmo ironia, que encontramos hoje facilmente a nossa volta. Agora, queria que os extremos aparecessem na própria história: navios afundando, assassinatos, gângsteres, medo, mistério. ‘A praia de Manhattan’ foi meu livro mais difícil de escrever, de longe o mais engenhoso, com mais detalhes técnicos. Não teria como tê-lo escrito anos atrás.”

Ontem e hoje - Para ler o ‘Pato Donald’

“Não é exagero afirmar que vivemos hoje, aqui, um ‘estado de horror’. Com Trump, sinto-me como se estivesse dentro de um carro, com portas fechadas, guiado por um motorista lunático. Estou tentando transformar essa percepção em combustível para meu próximo livro. Nos últimos anos, mergulhei na ficção americana da primeira metade do século XX. Hoje, estou muito curiosa sobre uma escritora brasileira de quem me falam maravilhas, Clarice Lispector. Já separei alguns livros dela para devorar. Quem sabe ela não me ajudará a descobrir caminhos futuros? Te conto na nossa próxima conversa."

“Praia de Manhattan”

Autora: Jennifer Egan. Tradutor: Sérgio Flaksman. Editora: Intrínseca. Páginas: 448. Preço: R$ 49,90.