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‘É preciso ir além dos genes para entender machismo e sexismo’, diz antropóloga crítica da psicologia evolucionista

Susan McKinnon, antropóloga autora de ‘Genética neoliberal’, afirma que acadêmicos famosos como Steven Pinker oferecem respostas simplistas para problemas intrincados
A antropóloga americana Susan McKinnon, autora de "Genética neoliberal": "As teses da psicologia evolucionista tornam impossível que haja outras maneiras de viver e de ser livre" Foto: Divulgação
A antropóloga americana Susan McKinnon, autora de "Genética neoliberal": "As teses da psicologia evolucionista tornam impossível que haja outras maneiras de viver e de ser livre" Foto: Divulgação

Se você já leu algum dos livros do psicólogo e linguista canadense Steven Pinker (“Como a mente funciona”, “Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana”), talvez já esteja familiarizado com as teorias da chamada psicologia evolucionista, que destaca, nas nossas escolhas (amorosas, profissionais etc.), o papel atribuído a nossos genes e seu objetivo: replicar-se. Segundo o jornalista americano Robert Wright, um dos principais divulgadores desta linha de pensamento, “a seleção natural se encarrega de ‘pensar’; nós, de fazer”. E nossos genes pensariam como investidores frios, preocupados apenas com resultados.

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Os psicólogos evolucionistas explicam suas teorias por meio de uma linguagem acessível e de exemplos do dia a dia e vendem milhões de livros mundo afora. No entanto, para a antropóloga americana Susan McKinnon, suas teses não passam de uma “ciência malfeita”, carente de evidências e que naturaliza o que ela qualifica como “valores neoliberais”. No livro “Genética neoliberal: uma crítica antropológica da psicologia evolucionista”, recém-lançado no Brasil pela Ubu, ela argumenta que Pinker e cia. transferiram para os genes qualidades geralmente associadas ao pensamento, como consciência e criatividade.

A psicologia evolucionista propaga concepções sobre gênero, sexualidade e relações de parentesco que seriam universais, mas que são contestadas pela antropologia. Por exemplo, como o objetivo dos genes é replicar-se, os homens teriam uma propensão natural à promiscuidade e à poligamia e a sentirem atração por mulheres que possuem atributos físicos associados à fertilidade, como formas curvilíneas. Já as mulheres, para assegurar a sobrevivência de sua prole, tenderiam a escolher parceiros engenhosos, que controlem “recursos”. Portanto, a dupla moral que permite a infidelidade masculina e pune a feminina não seria um dado da cultura, mas uma lei inscrita no código genético de todos os povos. Para McKinnon, os psicólogos evolucionistas transformam realidades culturais específicas em leis universais e “prescrições morais”.

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— Há diversas relações de gênero e parentesco que são diferentes das que temos na cultura ocidental — explica. —  Os psicólogos evolucionistas são incapaz de compreender a possibilidade de relações que não têm a maximização genética como o único objetivo. Vemos isso em nossa própria cultura, nas famílias formadas por adoção ou por casais gays ou lésbicos, por exemplo. No entanto, as teses da psicologia evolucionista tornam impossível que haja outras maneiras de viver e de ser livre.

Professora da Universidade da Virgínia, no Estados Unidos, McKinnon passou três anos no leste da Indonésia investigando as hierarquias sociais e as articulações entre gênero, parentesco e casamento em culturas nativas. Ela lembra que a literatura antropológica já documentou as mais diversas compreensões de gênero, sexualidade, casamento e parentesco nas mais diferentes culturas. E nada disso levou os psicólogos evolucionistas a rever seu determinismo genético. Em “Genética neoliberal”, McKinnon afirma que eles descartam ou distorcem evidências que contradizem suas teses.

O americano David Buss, por exemplo, defende que o ciúme é uma resposta adaptativa à incerteza masculina quanto à paternidade. Para justificar essa tese, Buss apresenta a seguinte estatística: 23% das mulheres espancadas pelos companheiros haviam cometido adultério. A violência doméstica, portanto, teria sido uma reação de machos preocupados com a possibilidade real de outros homens fecundarem suas mulheres. No entanto, Buss não explica o que levou os maridos de  77% das mulheres a espancá-las mesmo sem o risco de criarem os filhos de outros homens.

Abordagem cultural

“Genética neoliberal” foi publicado originalmente em 2005. McKinon diz que nenhum psicólogo evolucionista veio a público contestar o livro e arrisca algumas hipóteses para explicar a popularidade da ciência que ela chama de “malfeita” e “ideológica”.

— Complexidade não vende. A psicologia evolucionista apresenta respostas simples para problemas complexos — diz.  — É mais fácil explicar o comportamento humano apelando para algo que soa científico, como um “gene”, do que falar de fatores históricos ou culturais que escapam à lógica única da maximização genética. Além disso, as teses da psicologia evolucionista convergem com a visão de mundo predominante na nossa cultura. As pessoas sabem que existe uma dupla moral e quando ouvem uma teoria genética que afirma que os homens são de fato mais “promíscuos” pensam “ah, então é isso”.

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Embora a psicologia evolucionista continue popular, seu principal garoto-propaganda têm sido alvo cada vez mais frequente de críticas. No ano passado, 500 linguistas enviaram uma carta à Associação Americana Linguística acusando Pinker de abafar “vozes de pessoas que sofrem violências racistas e sexistas”. Pinker já negou que houvesse uma relação entre o racismo e a violência policial e afirmou que a suposição de que “um padrão de ódio pelas mulheres” tivesse contribuído para o assassinato de seis mulheres na Universidade da Califórnia, em 2014, era “estatisticamente obtusa”.

— Esse tipo de opinião é resultado do desprezo por explicações que envolvam a cultura. É preciso ir além da genética para entender como se estruturam o machismo e o sexismo — rebate McKinnon.

Capa do livro "Genética neoliberal: uma crítica antropológica da psicologia evolucionista", de Susan McKinnon, publicado pela Ubu Foto: Reprodução / Divulgação
Capa do livro "Genética neoliberal: uma crítica antropológica da psicologia evolucionista", de Susan McKinnon, publicado pela Ubu Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

“Genética neoliberal”

Autora: Susan McKinnon. Tradução: Humberto do Amaral. Editora: Ubu. Páginas: 224. Preço: R$ 59,90.