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Edição dos diários de Virginia Woolf mostra a escritora longe da melancolia e traz alerta contra o autoritarismo

Seleção de escritos pessoais da autora britânica apresenta uma mulher que tirava da escrita e da leitura sua pulsão de vida, rivalizava com Katherine Mansfield e associava o patriarcalismo ao fascismo
Retrato de Virginia Woolf, anos 1920 Foto: Mondadori Portfolio / Agência O Globo
Retrato de Virginia Woolf, anos 1920 Foto: Mondadori Portfolio / Agência O Globo

“As nuvens mudam de lugar, se separam, e atravessam a paisagem como se fossem lençóis puídos com as bordas esfiapadas; enchem o ar com diferentes luzes e trevas, povoam-no, conferem-lhe variedade e romance.” Foi assim que Virginia Woolf , então com 25 anos, descreveu uma caminhada pelo condado de Sussex, no sudeste da Inglaterra, em setembro de 1907. O trecho — parte de “Os diários de Virginia Woolf: uma seleção (1897 a 1941)”, que chega às livrarias pela Rocco — é um dos muitos em que ela usa seus cadernos pessoais para exercitar o estilo que só se tornaria um primeiro romance, “A viagem”, oito anos depois.

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— Há trechos nos diários que são exercícios prévios da escritora. As descrições de paisagens, de sensações, as ações cotidianas... E esta é a primeira vez que os diários de juventude dela são incluídos em uma seleção brasileira — explica a crítica literária Flora Süssekind , organizadora do livro.

Woolf começou a escrever diários aos 14 anos, em 1897, e seguiu até sua morte, aos 59, em 1941. No total, deixou 38 cadernos, nos quais faz anotações sobre seu cotidiano, reflete sobre sua produção literária e sobre o que lê, além de registrar impressões sobre seu tempo histórico. Tudo isso, com o texto e a capacidade crítica de, bem, Virginia Woolf .

— É um grande barato ler esses diários porque podemos perceber como ela foi construindo sua voz como escritora e também ampliando sua visão de mundo. E isso vem ao lado da escrita solta do dia, o diário mesmo — diz Süssekind, que recomenda deixar de lado o que já se sabe sobre a escritora britânica. — Saber que ela se suicidou contamina a leitura. A melancolia está presente, mas os diários mostram força e vigor em tudo. Ela tinha uma enorme capacidade passional de envolvimento com a vida.

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De fato, Woolf se envolveu: com o grupo de Bloomsbury (do qual faziam parte, entre outros, seu companheiro Leonard Woolf, o escritor E.M. Forster e o economista John Maynard Keynes); manteve a editora Hogarth Press com Leonard; escrevia artigos para jornais e revistas; dava palestras para associações de mulheres e se dedicava com fervor aos livros.

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Os diários mostram que ela não tinha uma fórmula. A cada livro, buscava um novo processo e criava uma estrutura para trabalhar, como anotou em outubro de 1923 sobre “Mrs. Dalloway”, lançado dois anos depois: “Passei um ano tateando até descobrir o que eu chamo de meu processo de tunelização, por meio do qual eu conto o passado a prestações. Essa é a minha principal descoberta até agora”.

Virginia Woolf Foto: Reprodução
Virginia Woolf Foto: Reprodução

Woolf escrevia também sobre o que lia, sempre ressaltando prós e contras de obras e personalidades. Leu “Ulisses”, de Joyce, com “espasmos de admiração” e “longos lapsos de aborrecimento”. Anotou que a poeta italiana Christina Rossetti “privou-se do amor, o que também significa de vida”, e desaprovou os “comentários impertinentes” do poeta John Milton sobre “o casamento e os deveres das mulheres”.

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Quando Katherine Mansfield morreu, em janeiro de 1923, Woolf deixou escapar a própria vaidade: “Pareceu-me que não havia sentido escrever. Katherine não vai ler isso, não é mais minha rival”. Mais de um ano depois, ela volta ao tema: “Se estivesse viva, teria continuado a escrever, e as pessoas teriam percebido que a mais talentosa era eu.”

Woolf também dava mostras de sua vaidade ao escrever sobre roupas. No decorrer das décadas, ela faz anotações sobre a adequação do vestir, os momentos em que se deixou levar e comprou mais do que devia e chegou prometer a si mesma escrever “sobre o meu amor pelas roupas”. Surpreendente é a entrada no diário, em fevereiro de 1931, em que ela conta ter feito um permanente: “Eu vou experimentar o mundo cacheada, disse a mim mesma às 6 da manhã: muito valentemente; gosto do meu temperamento experimental”.

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Embora Woolf tenha vivido e escrito sobre a Primeira Guerra Mundial e a gripe espanhola, é nos anos 30, com a ascensão do nazifascismo e a chegada da Segunda Guerra Mundial, que os diários ganham tons dramáticos. A década, que começa com “Vou sinalizar o meu retorno à vida, isto é, à escrita, começando um livro novo”, registrado em setembro de 1930, ganha um “cenário púrpura”, como ela escreve, à medida que os nazistas avançam.

— Nesse momento, ela associa o patriarcalismo ao fascismo, critica a própria classe social e discute o autoritarismo, de seus primeiros sinais ao horror da guerra — diz Süssekind, que s e aposentou da Casa de Rui Barbosa em 2020 , onde era pesquisadora há 39 anos, depois de ser exonerada pela presidente da instituição escolhida pelo governo de Jair Bolsonaro. — É uma leitura muito atual para nós, nesse momento de autoritarismo revigorado no mundo.

Em seu último ano de vida, com Paris ocupada pelos nazistas e a certeza de que Londres seria atacada, Woolf recorreu à literatura, para ela uma fonte de vida, e a seu autor favorito e o mais citado nos diários: “Se esta for minha última etapa, não deveria ler Shakespeare?”.

96887202_SC EXCLUSIVO - Diários de Virginia Woolf uma seleção 1897-1941 organizado por Flora Süsseki (1).jpg Diários de Virginia Woolf: uma seleção (1897 a 1941). Organização: Flora Süssekind. Tradução: Angélica Freitas. Editora: Rocco. Páginas: 432. Preço: R$ 129,90.