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'Ele se dizia expulso do mundo contemporâneo', diz filha de Candido

Intelectuais repercutiram morte do crítico literário, na madrugada desta sexta
Antonio Candido Foto: Daniel Mobilia / O GLOBO
Antonio Candido Foto: Daniel Mobilia / O GLOBO

RIO —  Intelectuais e artistas repercutiram a morte do crítico e escritor Antonio Candido , na madrugada desta sexta-feira, aos 98 anos.

— Meu pai era um otimista — diz a historiadora Marina de Mello e Souza. —  Ele se dizia desinteressado das coisas, o que era da boca pra fora, porque ele estava sempre comentando uma notícia ou outra. O que é fantástico, e um privilégio para quem era próximo dele, é que ele tinha uma cabeça extraordinária. Vivia de acordo com suas crenças e era coerente. Sempre dividiu o que tinha e respeitava o próximo. Todos valores que no mundo contemporâneo parece que não existem mais.

Segundo Marina, seu pai ainda continuava escrevendo, mas apenas em "termos pessoais". Ele se dizia "expulso do mundo contemporâneo".

—  Em um momento como este, a morte de uma pessoa como Candido representa um mundo que acabou, do sonho de criar uma igualdade que não aconteceu. E de repente a gente está vivendo no século XIX. Ele via no noticiário a ascensão da direita, a guerra na Síria, a intolerância... Tudo isso espantava muito ele.

RELEMBRE : Uma entrevista-aula com Antonio Candido na Flip 2011

Presente no velório de Candido nesta sexta-feira, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva afirmou, em seu site oficial, que tem orgulho de ter convivido com ele.

"O Brasil perdeu hoje mais do que um dos maiores intelectuais da nossa história. Perdemos um ser-humano excepcional, que dedicou sua vida à cultura, à democracia e à justiça social. E o fez com excelência em todos os campos. Foi um corajoso adversário de qualquer tipo de autoritarismo e já nos anos 40 fundou a União Democrática Socialista. Lutou contra a ditadura militar e durante toda sua vida se manteve fiel aos ideais da esquerda democrática. Não foi apenas fundador do PT, foi militante cotidiano do partido, um petista sempre presente no bom combate em defesa do desenvolvimento nacional. Participou da elaboração de programas de governo, viajou o país e teve uma importantíssima atuação a favor da transformação social e do direito dos trabalhadores", escreveu.

Para a acadêmica Nélida Piñon, "Antonio Cândido era o mestre do Brasil, o mestre de todos nós".

— Ele ajudou a interpretar o Brasil, e compreendia como poucos como a literatura é abrangente — disse. — Sempre teve um carinho muito grande comigo, era como se o simples fato de ser uma escritora brasileira já me fizesse merecer esta atenção, ele conhecia os transtornos da profissão.  Ele chegou lúcido aos 98 anos, certamente sua memória e legado vão durar muito anos mais.

O professor Domício Proença Filho considerava Candido 'um dos nossos maiores críticos, um pioneiro, um homem de grande atuação política e pedagógica".

— Era um grande amigo, devo muita coisa a ele. Vai deixar um vazio enorme, era uma referência intelectual para todos nós. Se ele se candidatasse à vaga na Academia certamente seria ungido, mas nunca quis. Não por alguma discordância, ele esteve conosco várias vezes, era uma questão da personalidade dele mesmo. A próxima sessão da ABL provavelmente será dedicada a sua memória.

O ex-ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, lembra que Candido "formou gerações de pessoas que formaram outras gerações".

—  Ele foi um intelectual notável, um extraordinário professor, que formou gerações de pessoas. E essas pessoas formaram outras gerações, temos muitos netos e bisnetos intelectuais de Antonio Cândido por aí. Ele tinha uma olhar incrível, foi um dos primeiros a destacar o talento de Clarice Lispector. E também tinha uma dignidade enorme, mesmo quem discordava de suas posições tinha um profundo respeito por ele, isso é algo muito raro.

Segundo o filósofo Adauto Novaes, Candido era uma figura que jamais saiu de seu tempo

— A gente descobria as dificuldades do pensamento através da extrema simplicidade com que ele escrevia — lembra Adauto Novaes. — Ele transformava literatura numa grande análise filosófica.

Para o crítico literário Roberto Schwarz, trata-se de "uma perda enorme, que nos deixa mais sós".

— A figura de Antonio Candido é singular — diz Schwarcz — Ele viveu muito tempo e tinha uma memória extraordinariamente exata e viva das muitas coisas lidas, presenciadas e ouvidas. O conjunto era bem repertoriado, como um fichário de pesquisador. Como ele conservou até o fim a sua agilidade mental, estava sempre reprocessando o que sabia, examinando velhas anedotas, comparando os tempos, os lugares e as leituras, chegando a novas conclusões. Essas recapitulações tinham viés moderno e crítico, pois eram atravessadas pelo partido sistemático que ele havia tomado pelos oprimidos, fossem eles os pobres, as mulheres, os negros, os subdesenvolvidos. Sem quixotismo, era a certeza de que o conhecimento vivo depende dessa dimensão, sem a qual não sabemos das coisas. A completa ausência de vulgaridade, que era outro traço marcante de Antonio Candido, ligava-se a esta antipatia pela opressão.

Membro da Academia Brasileira de Letras, o jurista Celso Lafer Antonio Candido diz que Candido foi um "grande intelectual e um ser humano de virtudes excepcionais"

— É um grande mestre pela envergadura das contribuições que deu para o entendimento do Brasil, de sua literatura e do fenômeno literário. É um mestre pela limpidez da presença de sua conduta ética na vida brasileira que Afonso Arinos caracterizou como sendo a de "uma tolerância sem concessões" e de "uma firmeza sem rusticidade". No seu modo de ser de um homem de abrangente cultura, confluíam a generosidade, a simplicidade, o humor, a coragem e o empenho em ser justo no trato das pessoas, das obras e das situações. Para os que tiveram, como é o meu caso, o privilégio de ter sido seu aluno, amigo e compadre, ele é, "melhor que as palavras possíveis da gente", como escreveu, Guimarães Rosa.