Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros Resenhas

Elena Ferrante volta a Nápoles em 'A vida mentirosa dos adultos' e aprofunda temas como opressão do capital e do gênero

Se você já leu a autora italiana, não vai se decepcionar; se nunca leu, pode começar por este livro
Rua de Nápoles, cidade onde Elena Ferrante situa seus romances Foto: Giuseppe D'Anna / Giuseppe D'Anna
Rua de Nápoles, cidade onde Elena Ferrante situa seus romances Foto: Giuseppe D'Anna / Giuseppe D'Anna

A notícia da tradução de um novo romance de Elena Ferrante, em pleno isolamento social, vale o sol estourado de Nápoles em oposição ao dia cinza, triste e frio que eu vejo pela janela.

Andamos precisando de boas notícias.

Se você leu os livros anteriores, já sabe o que esperar (e não vai se decepcionar). Uma cena de abertura acachapante; ponto de vista feminino; violência miúda e violência aberta; a sombra ominosa de um vulcão que pode explodir o mundo inteiro; uma narrativa sob pressão, de aparência simples e alcance muito, muito profundo.

Experimente: Leia trecho inédito de 'A vida mentirosa dos adultos'

Mas se você nunca leu Ferrante, ora, que felicidade poder começar por “A vida mentirosa dos adultos”.

(E vale registrar que, se já estávamos acostumados com boas traduções de Ferrante, Marcello Lino, responsável por outros quatro livros da autora, oferece aqui mais um trabalho cristalino e elegante, além de flexível o suficiente para dar conta da progressiva sofisticação da voz da narradora. Um verdadeiro privilégio.)

O que você vai encontrar aqui é a história de alguns anos da vida de uma menina. E moça. Giovanna e Giannina, seu quase alter ego.

Logo na abertura ela declara: “Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia….” Com o virar das páginas, vai ficando claro que não foi bem assim. Na verdade o que o pai disse foi que ela tinha agido como a tia, irmã dele, espécie de espectro, símbolo de tudo que fosse mau, inadequado, evitado na família.

A partir dali, claro, Giovanna decide que quer descobrir essa tia.

Autora genial: Os livros de Elena Ferrante

E sua descida ao “mundo dos mortos” representado pela parte baixa da cidade de Nápoles vai dar o contorno de quase tudo que venha a acontecer com ela e com as pessoas que a cercam. Numa espécie de road movie dentro de uma única cidade, o que você acompanha é o processo que leva Giovanna a descobrir quem é, desenterrar raízes, sondar caminhos e identidades, personas e sexualidades, tudo detonado por seu contato com a personagem incrível que é a tia, seus mistérios e suas estranhas ligações pessoais, com vivos e mortos.

Sorvete napolitano

Os elementos familiares para os leitores de Ferrante vão reaparecer. A opressão do capital e do gênero, por exemplo. Mas agora tudo é visto de um ponto mais alto da pirâmide, por alguém que não é mais desse mundo, mas sente uma perversa atração pelo que de mais duramente napolitano exista no passado do pai, intelectual refinado que acredita ter dado as costas a essa realidade.

As mentiras que constituem as vidas de todos ( todos ) os adultos em torno de si, pequenas falsidades e grandes traições vão sendo todas vislumbradas, compreendidas e julgadas por Giovanna, observadora atenta e impiedosa como todo adolescente. E, como toda adolescente, destinada ela mesma a embarcar cedo ou tarde na trajetória de mentiras e ocultamentos que chamamos de vida adulta.

Ou não. Leia e veja.

Identidade secreta: Jornalista afirma ter 'desmascarado' Elena Ferrante

Houve certa especulação quanto à possibilidade de este livro ser a abertura de outra série. Cabe a dúvida, claro.

Parte de mim torce que não seja o caso, e que a cena final do romance valha pelo efeito que tem na última página. Sem se desdobrar.

Outra parte de mim, no entanto, não reclamaria nada de ver o que Ferrante ainda teria a nos oferecer, e o que Giovanna (mais esperta que Lenù e menos autodestrutiva que Lila, as famosas personagens da tetralogia napolitana que se inicia com “A amiga genial”) pode ainda nos ensinar.

Renovadora do romance

Eu, vítima da burrice masculina mais consagrada, não canso de me maravilhar ao ver o quanto autoras como Ali Smith, Martha Batalha, Elena Ferrante e Lucy Ellmann (do prodigioso “Ducks, Newburyport”) estão sendo capazes não apenas (como se fosse pouco) de contar novas histórias, mas de revigorar intensamente a forma do romance, as possibilidades e a riqueza de um gênero que, sim, foi sempre destinado a explorar a multiplicidade, a alteridade, mas que nas mãos delas revela novos poderes.

Com elas, não estamos apenas lendo mulheres. Não estamos apenas lendo sobre mulheres. (Como se fosse pouco.)

Estamos aprendendo a reavaliar as hierarquias normais de protagonistas e coadjuvantes, a reler todo um romance gigantesco por perceber que a verdadeira tragédia ali não era a da primeira pessoa. A fazer como Giovanna, depois de anos e centenas de páginas, e olhar mais uma vez para uma pessoa que esteve ali o tempo todo, sendo talvez a única que a compreendia, que era como ela seria; ignorada, no entanto, por seu olhar voraz e apressado.

Já se disse que neste romance Ferrante se repete.

Eu não vejo diluição. Vejo adensamento, e espero que ela prossiga por muito tempo lidando com os mesmos temas e ideias, indo cada vez mais fundo neles, e dando de tudo isso uma síntese ainda mais poderosa do que a pancada que já é essa vida mentirosa.

Andamos precisando de boas notícias.

Capas exclusiva e normal de "A vida mentirosa dos adultos", de Elena Ferrante Foto: Divulgação
Capas exclusiva e normal de "A vida mentirosa dos adultos", de Elena Ferrante Foto: Divulgação

'A vida mentirosa dos adultos' será lançado via clube do livro

O novo romance de Elena Ferrante chega ao Brasil em duas etapas: uma edição agora em junho pelo intrínsecos, clube de assinatura da editora Intrínseca, e outra em 1º de setembro, nas lojas. Para adquirir a edição do Intrínsecos antes, é preciso ser assinante. Quem entrar para o clube até 14 de junho pode comprar à parte a caixa com o novo livro da autora italiana.

“A vida mentirosa dos adultos".Autora: Elena Ferrante. Tradução :Marcello Lino. Editora: Intrínseca. Páginas: 432. Preço da assinatura: R$ 49,90/mês + frete fixo de R$ 10,00 (plano anual); R$ 54,90/mês + frete fixo de R$ 10,00 (plano padrão). Caixa avulsa: R$ 54,90 + frete R$ 10,00.