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Em ‘Câmera lenta’, Marília Garcia repensa o mundo veloz em que vivemos

Poeta carioca chama a atenção para o que passa despercebido

Marília Garcia
Foto: Renato Parada / Divulgação
Marília Garcia Foto: Renato Parada / Divulgação

RIO — No novo livro da poeta carioca Marília Garcia, “Câmera lenta”, há palavras que vêm e voltam, sempre se reprisando de poema em poema. “Caixa-preta” é uma delas. “Congelada” é outra. Há frases e situações, também, que ressurgem, de longe, como ecos insistentes. Uma moça que conta os passos. Um casal que ama na chuva. Um desastre aéreo que assombra viajantes indecisos.

Não há, porém, imagem mais recorrente do que a da hélice. São hélices de helicópteros, hélices de turbinas de aviões e, enfim, a hélice da “forma helicoidal”, que serve de modelo conceitual à poeta. Segundo o dicionário, a forma helicoidal representa “o movimento de um sólido que gira em torno de um eixo e se desloca ao longo deste eixo”. Da mesma maneira, as palavras-chaves de Marília se movimentam em loop na composição de seus poemas. As fixações geométricas e o gosto pelas repetições não são apenas um hobby ou um exercício gratuito da autora: trata-se de mais uma de suas investigações sobre os paradoxos do deslocamento e da linguagem.

— A forma da hélice produz um deslocamento a partir do movimento giratório — explica ela, que acabara de se mudar para perto da Avenida Paulista, em São Paulo, sob muitos aviões e helicópteros, quando começou a escrever o livro. — Esse movimento traz a ideia de repetição, já que acontece em torno de um eixo. Mas é uma repetição diferente, que produz o deslocamento. Assim, tentei relacionar essa figura com a ideia do deslocamento na linguagem: como fazer para, de fato, deslocar? É possível repetir e trazer algo diferente na repetição?

Em “Câmera lenta”, Marília vive na tensão entre o deslocamento e a paragem, o fluxo e a interrupção. Assim, a história de amor do livro parece voltar sempre à mesma indefinição. A narradora fotografa a mesma ponte, repetidas vezes. E algumas viagens são constantemente interrompidas, seja pela incapacidade de embarcar, seja por obstáculos do destino. É como se a poeta falasse a toda hora sobre movimento, mas sem sair do seu lugar. Como se usasse e gastasse as mesmas palavras para dar um novo sentido a elas.

— Falo sobre o medo de não conseguir sair do lugar em vários sentidos, desde um plano pessoal, que trata da nossa vida: como sair dos nossos medos e traumas, por exemplo, e parar de repetir? Até um sentido mais amplo, como fazer para interromper ou deslocar os discursos gastos, o lugar-comum dos discursos políticos? Seria possível com a linguagem deslocar alguma coisa e, pelo menos, multiplicar estes discursos, seria possível mudar o curso e transformar alguma coisa? — indaga a poeta.

Como lembra o crítico Italo Moriconi na orelha do livro, Marília tem uma pesquisa poética “das mais consistentes do cenário atual da literatura brasileira”. Há uma ideia, talvez um projeto, que liga suas cinco publicações até aqui. É uma tentativa de ir experimentando, de tentar nomear o que está fazendo, mesmo sem saber para onde vai. Não raro, faz algumas perguntas recorrentes em voz alta, colocando seu próprio processo a nu. Como pensar o mundo com palavras? Como dialogar com as experiências? Como construir algo que ainda não se sabe o que é? São questões que aparecem de forma direta no longo epílogo-poema do livro — um falso manual de instruções, que traz mais dúvidas do que respostas sobre o seu funcionamento.

Marília lembra que os versos de seu primeiro livro, “20 poemas para o seu walkman”(lançado pela Cosac Naif e um dos finalistas do Portugal Telecom, hoje Prêmio Oceanos, de 2008) eram mais curtos e mais elípticos. No terceiro, “Um teste de resistores” (7Letras, 2014), eles eram mais longos e ensaísticos. Tanto “Engano geográfico” (7Letras, 2014) quanto “Paris não tem centro” (7Letras, 2015) eram dois poemas longos narrativos. “Câmera lenta”, por sua vez, se situa entre todos esses “tons”, numa tentativa “incorporar textos que traziam mais diferenças formais entre si”, diz a autora.

O título, explica Marília, faz referência ao recurso cinematográfico, e reflete alguns dos objetivos da poeta: repensar a velocidade e o excesso de informações de num mundo acelerado.

— Acho que um dos sentidos de apreender o mundo em câmera lenta é tentar desacelerar para ver as coisas mais simples e recorrentes, um avião passando agora, o barulho da geladeira ligada, a geometria dos objetos no quarto — observa — Tudo o que faz parte deste “infra-ordinário”, não acidentes, nem atentados, que seriam o “extraordinário”, e que todos nós queremos entender; mas o pequeno, o lugar-comum, o que acontece o tempo todo. Acho que a tentativa de desacelerar de que falo no livro tem relação com tentar ver e nomear o que vejo. E, ao nomear, tentar inventar algo que só a linguagem pode produzir, que não está ali se não dissermos.

Antes de serem reunidos na coletânea, os poemas de “Câmera lenta” eram lidos em público, no escuro, junto com projeções. Maríla também ministra oficinas, edita livros e traduz autoras importantes como Gertrude Stein e Scholastique Mukasonga. Em 2015, fundou a Luna Parque, casa independente que já resgatou títulos de Frank O’Hara, Nathalie Sarraute e Ledusha.

Não se trata, porém, de atividades paralelas, mas complementares. No epílogo do livro, aliás, Marília incorpora um poema escrito por um aluno de oficina, que dialoga com várias questões de “Câmera lenta”.

— Acho que ir a uma oficina como a que descrevo no livro e compartilhar com pessoas que estão escrevendo questões que me preocupam sobre escrita é escrever também — diz ela. — Talvez essas atividades tenham forma helicoidal: talvez sigam um mesmo eixo e se desloquem simultâneas contando uma com a outra e se complementando.