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Em coletânea de ensaios, pesquisadora analisa temas como o esquecimento e o silêncio cúmplice

Em 'A ficção equilibrista: narrativa, cotidiano e política', Vera Lúcia Follain de Figueiredo estabelece diálogo entre teóricos e artistas
'Arábia', filme de Affonso Uchôa e João Dumans, uma das obras citadas por Vera Lúcia Follain de Figueiredo Foto: Divulgação
'Arábia', filme de Affonso Uchôa e João Dumans, uma das obras citadas por Vera Lúcia Follain de Figueiredo Foto: Divulgação

Em “A ficção equilibrista: narrativa, cotidiano e política”, uma coletânea de ensaios de Vera Lúcia Follain de Figueiredo, a autora estabelece um diálogo entre teóricos, em grande parte estrangeiros, e artistas, cujo destaque vai para os latino-americanos. Dessa combinação de vozes, emerge uma fala singular, que nos instiga a pensar o Brasil atual.

Entre os temas abordados por Figueiredo estão o “esquecimento” e o “silêncio cúmplice”, como o mostrado no filme “O clube” (2015), do chileno Pablo Larraín, citado pela autora, cujo mote é o esforço de calar os crimes de pedofilia da Igreja Católica. Já em “Cachorros” (2017), da também chilena Marcela Said, outra obra mencionada pela autora, a temática gira em torno do perigo do esquecimento: o filme narra a história de uma família da elite econômica do Chile, cuja protagonista, que se manteve alheia às atrocidades cometidas pelo regime militar no seu país, vê, de repente, o passado político invadir seu cotidiano. Apesar disso, contudo, sua rotina não se modifica “radicalmente” e, “após um breve período de indefinição, ela opta pelo esquecimento”. Parece-me, aliás, que essa tem sido a opção de muitos brasileiros.

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Em sentido contrário aos filmes, porém, Figueiredo cita as obras do escritor brasileiro Julián Fuks e do argentino Patricio Pron, que dialogariam com a teoria de Pierre Nora, para quem “a necessidade de memória é uma necessidade histórica”.

Questionar certezas

O livro discute ainda a escrita como um “gesto político, porque [...] produz aquele estado mental chamado consciência histórica”, diz Vilém Flusser, teórico destacado pela autora, que se vale ainda do filme brasileiro “Arábia” (2017), de Affonso Uchôa e João Dumans, para fundamentar sua tese. Em “Arábia”, a conscientização política do operário não vem do movimento dos trabalhadores, mas do ato de escrita, “que organiza a memória”.

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A banalização do mal e a importância do pensamento também ganham destaque, dessa vez, nas vozes entrecruzadas de Jacques Rancière, Guy Debord e Hannah Arendt. Para Arendt, observa Figueiredo, a banalização do mal estaria relacionada com a “superficialidade em que se move o homem de massa”. Seria, portanto, necessário que ele se afastasse e contemplasse momentaneamente o “mundo, para que se possa questionar certezas estabelecidas”.

As epígrafes desse conjunto de ensaios são extremante bem escolhidas e dão, em poucas linhas, o tom das teses que a autora, doutora em Letras, professora associada do departamento de Comunicação Social da PUC-Rio e pesquisadora do CNPq irá desenvolver. Para discutir a partilha do espaço urbano, Figueiredo cita, por exemplo, uma frase de Eric Hobsbawm, na qual ele afirma que a economia global pode se livrar de países e de pessoas pobres dentro e fora das fronteiras, “contanto que o número de consumidores potencialmente interessantes continuasse suficientemente grande”. Essa tem sido a reflexão política mais recente na Europa, mas “que fora deixada de lado no período de euforia com o capitalismo neoliberal e a globalização”, lembra a autora.

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Como a história tem mostrado, as discussões reverberam sempre um pouco mais tarde por aqui. Assim, seguimos discutindo o neoliberalismo, mesmo depois de a pandemia ter colocado em xeque essa ideologia política.

Quanto ao papel dos intelectuais nos dias de hoje, valeria refletir sobre algo que Figueiredo destaca em seu livro: na segunda metade do século XX, na América Latina, a derrota sofrida pelos movimentos de esquerda, “ceifados pelas ditaduras militares, pôs fim à confiança dos artistas e intelectuais em sua capacidade de intervir na história do país”.

Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de “Cem encontros ilustrados” (Iluminuras)

“A ficção equilibrista”

Autora : Vera Lúcia Follain de Figueiredo. Editoras: Relicário/PUC Rio . Páginas: 240. Preço: R$ 49,90. Cotação: Ótimo.