RIO — Ana Paula Maia é uma marretada na literatura molenga contemporânea. Foge da conversa repetitiva, não fica de futrica entre os pares, não se atola em dramas infantojuvenis e dispensa qualquer cheiro de psicologia de butique. Ana Paula Maia quer produzir literatura com sangue nos olhos. E ninguém faz isso melhor que ela hoje, como se vê em “Enterre seus mortos” , seu sétimo romance e sua estreia na Companhia das Letras, chegando este mês às livrarias. É realismo bruto na veia, doa a quem doer, sem mimimi.
À frente desta nova história está um nome presente em outros de seus seis livros — todos igualmente fortes. Desta vez, Edgar Wilson vive de recolher animais mortos nas estradas de um fim de mundo miserento, quente, úmido. E morre-se muito por lá. De pequenos pássaros a gado grande, sempre há farto material de trabalho para Edgar Wilson. Dia após dia, ele enche sua caminhonete com quilos de carniça e leva a carga para o galpão onde um moedor gigante esfarela tudo. Nunca saberemos para quê. Nem importa. Em duas ou três linhas vamos nos sentir bem no meio desse cenário inóspito, o que pode ser bastante incômodo para leitores mais sensíveis a palavras cruas.
Leia trecho de 'Enterrem seus mortos'
Embrutecido no emprego insano, Edgar Wilson é um homem vacinado contra cheiros podres e texturas estranhas, não foge de situações mórbidas ou repugnantes — e elas surgirão muitas vezes ao longo do livro. Tampouco tem medo de mortos, mas de morrer sozinho e ficar insepulto, exposto ao vexame de ser devorado pelos abutres da região. Eles são muitos, assim como são muitos os edgars wilsons largados país adentro — e por isso eles voltam tanto às histórias de Ana Paula Maia, noutros papéis, vivências diferentes, mas tocando a mesma existência em suspenso. Vale conferir, por exemplo, “Carvão animal” (2011) e “De gados e homens” (2013), ambos da editora Record, peças anteriores desse universo peculiar que está sendo retratado pela escritora.
Parceiro de Edgar Wilson nessa tarefa extenuante, Tomás é outro personagem rico. Por ter matado um homem, foi excomungado há algum tempo, antes mesmo de terminar o seminário, mas anda por aí distribuindo sacramentos, confortando os vivos e os quase mortos. Daí ser chamado de padre. No fim das contas, como tanta gente, está metido na podridão porque a vida é assim mesmo, mas mantém o coração sempre atento às dores alheias. Elas são muitas, assim como são muitos os bons sujeitos que vivem de catar bichos país adentro — e por isso eles voltam tanto às histórias de Ana Paula Maia...
O problema é quando cadáveres de pessoas começam a aparecer no caminho dos dois personagens. Sabe-se lá de onde vieram, nem importa quem foram algum dia, mas uma coisa é certa: eles não podem ficar apodrecendo ao léu. E não contem com a polícia para recolhê-los, porque sempre há outras prioridades.
Empenhados em exercitar a humanidade que resiste sob a brutalidade que os cerca, Edgar Wilson e Tomás querem dar àqueles corpos um fim digno. Só que a empresa para a qual trabalham os proíbe de carregar gente defunta em suas caminhonetes, e os chefes são rigorosos na aplicação das regras. Os companheiros não gostam de deixar mortos para trás, mas também não querem ser demitidos à toa...
Até onde eles irão? Recolher ou não aqueles corpos? Deixá-los num necrotério superlotado, vendê-los, enterrá-los? Levar os ex-humanos para o moedor de carcaças? Na busca pela solução, os dois ainda vão descobrir que sempre há espaço para novas barbáries. Pensar nisso é uma boa maneira de descobrir por onde a gente anda de fato. Aliás, nesse mundo nada improvável de existir, até onde você iria?
Sem subterfúgios, retratando um cenário masculino (não se rendendo, benzadeus, à censura do tal “lugar de fala”), Ana Paula Maia reforça com “Enterrem seus mortos” um projeto literário consistente, que já mereceu tradução para cinco idiomas. Mais que isso, a escritora, nascida em Nova Iguaçu há 41 anos, parece devidamente inscrita na linhagem de João Gilberto Noll, Rubem Fonseca e outros nomes da pesada. Baita responsabilidade.
“Enterre seus mortos"
Autora: Ana Paula Maia. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 131. Preço: R$ 34,90.