Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

Em 'Enterre seus mortos', Ana Paula Maia recheia 131 páginas com realismo bruto

Em novo romance, autora narra cotidiano de homens que recolhem animais mortos
Ana Paula Maia: autora estreia pela Companhia das Letras com novo romance Foto: Rafael Dabul/Divulgaçao
Ana Paula Maia: autora estreia pela Companhia das Letras com novo romance Foto: Rafael Dabul/Divulgaçao

RIO — Ana Paula Maia é uma marretada na literatura molenga contemporânea. Foge da conversa repetitiva, não fica de futrica entre os pares, não se atola em dramas infantojuvenis e dispensa qualquer cheiro de psicologia de butique. Ana Paula Maia quer produzir literatura com sangue nos olhos. E ninguém faz isso melhor que ela hoje, como se vê em “Enterre seus mortos” , seu sétimo romance e sua estreia na Companhia das Letras, chegando este mês às livrarias. É realismo bruto na veia, doa a quem doer, sem mimimi.

À frente desta nova história está um nome presente em outros de seus seis livros — todos igualmente fortes. Desta vez, Edgar Wilson vive de recolher animais mortos nas estradas de um fim de mundo miserento, quente, úmido. E morre-se muito por lá. De pequenos pássaros a gado grande, sempre há farto material de trabalho para Edgar Wilson. Dia após dia, ele enche sua caminhonete com quilos de carniça e leva a carga para o galpão onde um moedor gigante esfarela tudo. Nunca saberemos para quê. Nem importa. Em duas ou três linhas vamos nos sentir bem no meio desse cenário inóspito, o que pode ser bastante incômodo para leitores mais sensíveis a palavras cruas.

Leia trecho de 'Enterrem seus mortos'

Embrutecido no emprego insano, Edgar Wilson é um homem vacinado contra cheiros podres e texturas estranhas, não foge de situações mórbidas ou repugnantes — e elas surgirão muitas vezes ao longo do livro. Tampouco tem medo de mortos, mas de morrer sozinho e ficar insepulto, exposto ao vexame de ser devorado pelos abutres da região. Eles são muitos, assim como são muitos os edgars wilsons largados país adentro — e por isso eles voltam tanto às histórias de Ana Paula Maia, noutros papéis, vivências diferentes, mas tocando a mesma existência em suspenso. Vale conferir, por exemplo, “Carvão animal” (2011) e “De gados e homens” (2013), ambos da editora Record, peças anteriores desse universo peculiar que está sendo retratado pela escritora.

Parceiro de Edgar Wilson nessa tarefa extenuante, Tomás é outro personagem rico. Por ter matado um homem, foi excomungado há algum tempo, antes mesmo de terminar o seminário, mas anda por aí distribuindo sacramentos, confortando os vivos e os quase mortos. Daí ser chamado de padre. No fim das contas, como tanta gente, está metido na podridão porque a vida é assim mesmo, mas mantém o coração sempre atento às dores alheias. Elas são muitas, assim como são muitos os bons sujeitos que vivem de catar bichos país adentro — e por isso eles voltam tanto às histórias de Ana Paula Maia...

Capa do livro 'Enterre seus mortos', de Ana Paula Maia Foto: Divulgação
Capa do livro 'Enterre seus mortos', de Ana Paula Maia Foto: Divulgação

O problema é quando cadáveres de pessoas começam a aparecer no caminho dos dois personagens. Sabe-se lá de onde vieram, nem importa quem foram algum dia, mas uma coisa é certa: eles não podem ficar apodrecendo ao léu. E não contem com a polícia para recolhê-los, porque sempre há outras prioridades.

Empenhados em exercitar a humanidade que resiste sob a brutalidade que os cerca, Edgar Wilson e Tomás querem dar àqueles corpos um fim digno. Só que a empresa para a qual trabalham os proíbe de carregar gente defunta em suas caminhonetes, e os chefes são rigorosos na aplicação das regras. Os companheiros não gostam de deixar mortos para trás, mas também não querem ser demitidos à toa...

Até onde eles irão? Recolher ou não aqueles corpos? Deixá-los num necrotério superlotado, vendê-los, enterrá-los? Levar os ex-humanos para o moedor de carcaças? Na busca pela solução, os dois ainda vão descobrir que sempre há espaço para novas barbáries. Pensar nisso é uma boa maneira de descobrir por onde a gente anda de fato. Aliás, nesse mundo nada improvável de existir, até onde você iria?

Sem subterfúgios, retratando um cenário masculino (não se rendendo, benzadeus, à censura do tal “lugar de fala”), Ana Paula Maia reforça com “Enterrem seus mortos” um projeto literário consistente, que já mereceu tradução para cinco idiomas. Mais que isso, a escritora, nascida em Nova Iguaçu há 41 anos, parece devidamente inscrita na linhagem de João Gilberto Noll, Rubem Fonseca e outros nomes da pesada. Baita responsabilidade.

“Enterre seus mortos"

Autora: Ana Paula Maia. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 131. Preço: R$ 34,90.