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Em mesa que uniu passado e presente, historiadores falam em 'pesadelo' do Brasil atual

João José Reis e Ana Miranda imaginaram como momento do país será visto no futuro
Na mesa "Foras de série", Ana Miranda e João José Reis falam sobre História, com mediacao de Lilia Moritz Schwarcz Foto: Monica Imbuzeiro / Agência O Globo
Na mesa "Foras de série", Ana Miranda e João José Reis falam sobre História, com mediacao de Lilia Moritz Schwarcz Foto: Monica Imbuzeiro / Agência O Globo

PARATY - Passado e presente se entrelaçaram na mesa “Foras de série”, a primeira do quarto dia da 15ª Feira Literária de Paraty, pela perspectiva dos convidados João José Reis, referência nos estudos da história da escravidão, e Ana Miranda, autora de romances históricos e biografias. Num dos debates mais contundentes do evento até agora, os dois detalharam os seus modelos de pesquisa e, instigados pela mediadora (a também historiadora Lilia Schwarcz), compararam as mazelas do Brasil de outrora e de hoje.

Recém-agraciado com o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, João José Reis defendeu o sistema de cotas nas universidades como reparação à desigualdade econômica, criticou a remoção dos estudos da história e da cultura africana nas escolas, e comparou a reforma trabalhista com a escravidão.

— A nova lei trabalhista permite a volta de certas práticas chamadas como trabalho análogo à escravidão — disse, arrancando gritos de “Fora Temer” dentro da Igreja da Matriz e entre o auditório da praça, que se reunia em torno do telão. — Agora poderá haver uma situação de escravidão voluntariada. E isso acontece porque essa lei não foi compactuada com a classe trabalhadora e sim com os empresários.

Outro momento forte foi quando Lilia perguntou aos debatedores como os historiadores do futuro irão comentar o atual momento do país. Ana Miranda procurou por alguns segundos alguma definição, até que lançou:

— Como um pesadelo — disse. — Parece que estamos vivendo um filme gótico.

João José Reis, por sua vez, lembrou os assassinatos recentes de grupos quilombolas e o “massacre aos índios”, que na sua opinião chegou a um momento crítico.

— Não é ficção, é a realidade que estamos vivendo. E está muito bem documentada. É a documentação desse pesadelo que chegará aos historiadores.

A mesa, porém, não se restringiu apenas a questões contemporâneas. As fronteiras – muitas vezes “borradas”, como lembrou Lilia — entre ficção e História foi um tema recorrente da conversa, provocando trocas bem humoradas entre Reis, um acadêmico e historiador por formação, e Ana, uma romancista que bebe nos registros do passado para elaborar seus romances e biografias romanceadas.

A autora de “Xica da Silva, a Cinderela Negra” citou então uma frase da romancista francesa Marguerite Yourcenar, para quem, “todo romance é histórico na medida em que faz a recuperação de um tempo perdido”. E complementou:

— Os romancistas são historiadores que fingem estar mentindo e os historiadores são ficcionistas que fingem estar falando a verdade.

João José Reis brincou que precisava “restabelecer minha identidade como historiador” para não ficar mal com os colegas de profissão.

— A frase é muito boa, mas há limites — disse Reis, lembrando que, até o século XIX, a História era vista como literatura. — Nós historiadores temos que ter imaginação e trabalhar com probabilidades e verossimilhanças para vencer aquele buraco que a realidade não nos permitiu preencher. Diria que no nosso trabalho há 80 por cento de documentação e 20 por cento de imaginação. Se disser que faço ficção serei sacrificado num altar da História.