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Enrique Vila-Matas: 'Também deve-se exigir talento do leitor'

Em novo livro, espanhol retoma a obsessão por ventríloquos em busca de uma voz
O escritor Enrique Vila-Matas: narrador tenta reescrever um romance, mas o que sai é um diário cheio de reflexões sobre originalidade e repetição Foto: Divulgação / Agência O Globo
O escritor Enrique Vila-Matas: narrador tenta reescrever um romance, mas o que sai é um diário cheio de reflexões sobre originalidade e repetição Foto: Divulgação / Agência O Globo

RIO — O escritor espanhol Enrique Vila-Matas anda se repetindo. O narrador de “Mac e seu contratempo”, seu novo romance, quer reescrever “Walter e seu contratempo”, livro fracassado de seu vizinho, um escritor de algum sucesso. “Walter e seu contratempo” é a história de um ventríloquo azarado que só consegue fazer a própria voz. Esse também é o enredo de “Una casa para siempre”, romance do próprio Vila-Matas, publicado em 1988.

Mac, o narrador, até tenta reescrever o romance, mas o que sai é um diário cheio de reflexões sobre originalidade, repetição, a Espanha em crise e astrologia.

Vila-Matas conversou com O GLOBO sobre sua obsessão por ventríloquos, horóscopos e o que ele espera dos leitores.

“Walter e seu contratempo” é, na verdade, “Una casa para siempre”. Por que voltar a esse livro?

“Una casa para siempre” contava o drama de um ventríloquo que só tem uma voz — uma voz própria, essa tão buscada por escritores. Por razões óbvias, era um problema para o ventríloquo, já que é imprescindível ter diversas vozes para exercer seu ofício. Voltei ao livro porque todas as histórias são falsificações em cadeia de um relato original.

De onde vem seu interesse por ventríloquos?

De minha infância. Os ventríloquos me davam medo. O primeiro que eu vi, uma mulher, chamava-se Herta Frankel e era austríaca. Fugindo da destruição e da barbárie nazista, ela chegou a Barcelona em plena Segunda Guerra e ficou muito famosa. Todas as crianças a adorávamos porque ela era uma grande artista e não havia outra senhora vienense na cidade. Naqueles anos, quase não havia estrangeiros em Barcelona, e os que nós víamos nos pareciam misteriosos.

Que livro de outro autor gostaria de reescrever?

Transformaria “O homem sem qualidades”, de Robert Musil, em um romance de 100 páginas (o livro tem mais de mil) . É uma piada. Eu gosto de fracassar, mas nem tanto.

Qual a importância do fracasso na literatura?

O fracasso é inerente ao exercício da escrita: em alguma medida, sempre acabamos não materializando o que havíamos sonhado para um livro. Em um texto, Zadie Smith imaginou escritores, cheios de esperança e ilusão, que viviam em uma praia, enquanto os “romances perfeitos” se amontoavam, inacessíveis, do outro lado do mar.

Mac escreve um diário enquanto tenta ser escritor. Você escreve diários?

Tenho dois. Um é minha obra literária, em que finjo falar obliquamente de minha vida, embora não diga nada de real. O outro diário — pessoal, secreto, impublicável — contém, desde 1985, anotações frias e telegráficas, livres de qualquer tentação literária, dos fatos da vida. Esse segundo diário é uma redução seca e dura de minha biografia a 5 mil notas — até agora.

Mac lê o horóscopo todos os dias e crê que a astróloga Peggy Day escreva especialmente para ele. Você se interessa por astrologia?

A suspeita de Mac, de que Peggy Day escreve o horóscopo só para ele, eu também a tive, por algum tempo, em 2015. Todo fim de tarde, lia as previsões que o jornal barcelonês “La Vanguardia” dedicava a meu signo e via com assombro que tudo ali se encaixava com perfeição ao que havia ocorrido durante o dia.

“A arte contemporânea não oferece obras terminadas, somente inconclusas, para que o espectador as complete com sua imaginação”, escreve Mac. O leitor também deve completar os livros?

Sim, claro. Creio na “leitura ativa”, que contém o gesto mais democrático que conheço: abrir-se ao mundo e às verdades relativas do outro, à sagrada revelação de uma consciência alheia. Se se exige talento de um escritor, deve-se exigi-lo também do leitor. A viagem da leitura passa por terrenos difíceis, que pedem tolerância, espírito livre, emoção inteligente, desejo de compreender o outro e de se aproximar de linguagem diferente da que nos sequestrou.

“Os melhores autores”, diz Mac, “assumiram, em suas próprias estruturas narrativas, o caos do mundo e a dificuldade de entendê-lo”. Incluir o “caos do mundo” na narrativa é um compromisso político da literatura?

O único compromisso de um escritor é não trair a si mesmo. Gosto dos que conseguiram escrever sobre suas experiências pessoais e, ainda assim, alcançar a esfera social. E daqueles que, tendo estabelecido a literatura como um fim em si mesmo, souberam assimilar a condição de impostor.

“Mac e seu contratempo”

Autor: Enrique Vila-Matas

Tradução: Josely Vianna Baptista

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 288

Preço: R$ 59,90