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Ensaio de Sérgio Medeiros investiga papel dos animais na Guerra do Paraguai

Livro mostra como formiga-leão e sucuri e outros bichos participaram de um dos episódios mais atrapalhados do conflito

Sergio Medeiros: “Uma forma mais fluida de contar a guerra, tirando a História do cânone”
Foto: Divulgação
Sergio Medeiros: “Uma forma mais fluida de contar a guerra, tirando a História do cânone” Foto: Divulgação

RIO — Formiga-leão, sucuri, burro, jabuti, jaú, muquirana. Pouca gente imagina, mas uma lista de animais improváveis tiveram papel importantíssimo na Guerra do Paraguai — talvez muito mais do que o cachorro vira-latas que participou do conflito e hoje se encontra empalhado à exibição no Museu da Polícia Militar, no Centro do Rio. É o que conta o livro “A formiga-leão e outros animais na Guerra do Paraguai”, um ensaio bem-humorado do poeta, tradutor, ensaísta e professor do Departamento de Letras da UFSC, Sergio Medeiros, que acaba de ser lançado pela Iluminuras.

Durante a Guerra do Paraguai (cuja peleja final, a Batalha de Riachuelo, acaba de completar 150 anos), parte do Exército brasileiro alcançou o inimigo pelo Sul do país, e outra parte avançou pelo Centro-Oeste, cruzando a então província de Mato Grosso. Nesta segunda comitiva, foi enviado como reforço um soldado carioca de perfil inusitado: Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-1899), mais conhecido como Visconde de Taunay. Neto do pintor francês Nicolas de Taunay, um dos principais expoentes da Missão Artística Francesa no Brasil, o jovem de apenas 22 anos era romancista (autor dos romances “Inocência” e “A retirada da Laguna”), ilustrador, e de posicionamento politico bastante critico à guerra.

Muito se fala do resultado trágico deste episódio histórico, que deixou o Paraguai devastado e o Brasil com um gosto amargo de vitória. Mas pouco se sabe dos pormenores do conflito, como a trapalhada em que se meteu a tropa do Centro-Oeste, que ficou perdida no meio do mato por mais de um ano, sem conseguir chegar ao destino final. Só havia um mapa, oferecido pelo governo, “faceiro, colorido, mimoso”, como descreveu Taunay, e praticamente nenhum meio de comunicação para pedir socorro. Sem ter nenhum inimigo contra quem lutar, o soldado passava seu tempo escrevendo suas memórias (os textos seriam publicados postumamente, por seu filho), observando o comportamento dos animais, mas principalmente catando piolho — as muquiranas sentaram praça na cabeleira farta do soldado. Medeiros é assertivo: os insetos foram os principais inimigos daquela barafunda que se tornou a comitiva brasileira.

— O Visconde de Taunay é uma figura que ficou obscurecida quando se conta a historia da Guerra do Paraguai — lembra. — Em 2007, traduzi e reeditei os principais textos dele para a editora Iluminuras, e em dois deles, “Memórias” e “Viagens de outr’ora” percebi que, assim como eu, Taunay tinha imenso interesse pelos animais. O que eu quis fazer foi um ensaio, a partir destes textos, mas com humor, com sátira, que fosse uma forma mais fluida de contar a guerra, a partir do ponto de vista dos animais que fizeram parte dela, essa dimensão alegórica. Uma versão da guerra com a irreverência que era tão própria do Taunay. É uma forma de tirar o autor e a História do cânone. Um humor que dá vivacidade à Historia, sem anular a tragédia. De fato, o principal inimigo de Taunay na guerra foram os piolhos, o seu exército era menos preparado do que as formigas!

Um dos animais que mais chamaram a atenção de Taunay neste período de ócio foi a larva da formiga-leão, farta nesta região do país, um inseto que, quando adulto, se parece com uma libélula. Acocorado na beira do Rio Taquari, Taunay passou a estudar seu comportamento minuciosamente, e enxergou nela um modelo ideal de soldado. Impressionado com a maneira pela qual ela conseguia dilacerar suas presas, apesar do corpanzil gordo, de difícil locomoção, convertendo o próprio casulo em armadilha,o soldado tirou deste encontro banal uma série de lições de defesa e ataque de guerra.

— A larva mata as formigas sugando-lhes a linfa e depois oculta os cadáveres, para que ninguém (as outras formigas) descubram o seu “crime”. É um soldado terrível, como se percebe — detalha Medeiros.

Outro foi a sucuri, cobra contra a qual muitos dos soldados que estavam com Taunay tiveram de lutar. Ao perceber que a cobra também cantava, e que podia até “parir uma tempestade”, já misturando fatos e mitos indígenas, Taunay passou a estudar seu comportamento.

O autor usa esta relação aparentemente miúda entre os homens e os animais para fazer provocações sobre a guerra, que vão da etnografia à literatura, da História à mitologia indígena. Do encontro de Taunay com a larva da formiga-leão, por exemplo, ele tanto evoca as “inversões perspectivas” estudadas pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, como lembra do personagem Irineo, do romance “O jogo da amarelinha”, de Julio Cortázar, que demonstrava uma identificação cruel com as formigas todas as vezes que esmigalhava larvas de gusanos e as lançava ao formigueiro.

Os textos selecionados pelo ensaísta mostram que a coluna expedicionária estava “abandonada” em uma região exuberante do ponto de vista ecológico. Nesse contexto, os animais teriam se tornado mais próximos dos soldados do que qualquer autoridade do Império.

— Tudo foi se tornando inseguro e inusitado, e o mundo se revelou então ao mesmo tempo novo e arcaico, paradisíaco e violento. Os animais encarnavam a violência “selvagem”, ao lado dos pantanais intransponíveis, embora não significassem grande ameaça à segurança dos soldados — conta o autor. — Podemos ler hoje a descrição da atuação dos animais na Guerra do Paraguai, no recorte que propus no meu livro, como uma afirmação do absurdo dessa guerra, da sua inutilidade. O inimigo não aparece, os paraguaios são sombras apenas, então os “intrusos” no território brasileiro são, curiosamente, os próprios animais que habitam, e sempre habitaram, a fronteira entre os dois países em guerra. Porém, eles, na verdade, estão no seu habitat ou no seu território original. Quem está fora de lugar é o soldado brasileiro.