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'Escravidão - Volume 2' mostra efeito da exploração do ouro e diamantes no tráfico negreiro

Novo livro da trilogia de Laurentino Gomes destrincha o violento século XVIII
Imagem da pintura “Os lavadores de diamante”, de autor desconhecido: busca por pedras preciosas foi um dos principais motores do tráfico negreiro no século XVIII Foto:
/ Akg-images/Fotoarena
Imagem da pintura “Os lavadores de diamante”, de autor desconhecido: busca por pedras preciosas foi um dos principais motores do tráfico negreiro no século XVIII Foto: / Akg-images/Fotoarena

RIO - A descrição de um objeto ao mesmo tempo familiar e sinistro abre o segundo volume da trilogia “Escravidão”, o opus de Laurentino Gomes, que será lançado na próxima terça-feira. Trata-se de uma balança de pesar escravos, usada no século XVIII para definir o valor de seres humanos da mesma forma como se avaliava porcos, galinhas e queijos. Abrigada hoje na coleção do Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte, a relíquia é um símbolo do que o sistema social havia se tornado naquele período: uma violência corriqueira, completamente assimilada no cotidiano.

Após cobrir 250 anos de história no primeiro volume , que se iniciava no primeiro leilão de escravos (1444) e terminava com a morte de Zumbi dos Palmares (1695), o novo livro da trilogia investiga um país transformado pela mineração e pela corrida do ouro. Estamos agora no século XVIII, quando o comércio de seres humanos chegou ao seu auge. Nada menos do que 85% das viagens de navios negreiros aconteceram no período. Só o Brasil recebeu 2 milhões de escravizados.

Fazendo um recorte temporal preciso, Laurentino mostra a influência cada vez mais forte da escravidão no modo de vida das cidades brasileiras, assim como em eventos históricos como a Inconfidência Mineira.

Na terça-feira, às 10h, o autor participa de uma live do GLOBO, com transmissão no Facebook, no canal de YouTube e no site do jornal.

— Ao fazer a pesquisa para este livro, eu me surpreendi muito ao constatar o quanto a escravidão se tornara corriqueira e banal no Brasil do século XVIII. Era um fato da vida aceito, praticamente sem questionamentos, por brancos, negros, livres ou cativos — conta o jornalista e escritor, lembrando que todas as atividades da colônia dependiam do sangue e suor dos escravizados. — Mesmo irmandades religiosas de negros e mestiços eram donas de escravos. Pessoas cativas almejavam a alforria, o que nem sempre era sinônimo de abolicionismo.

O principal motor de todo o drama é a busca por ouro e pedras preciosas, que leva o território do país a dobrar. Essa corrida desenfreada, que salvou o reino de Portugal da ruína, foi possivelmente desencadeada por acaso, e por um “herói” anônimo. No final do século XVII, um desconhecido descendente de escravos encontrou “ouro finíssimo” em Minas Gerais, e o vendeu sem saber o seu real valor. O curioso caso, resgatado pelo autor, dá a entender que a exploração do ouro por aqui não se deu exclusivamente pelas mãos dos brancos bandeirantes, celebrados em estátuas.

— Essa é uma história fascinante — diz Laurentino. — O único registro que sobrou deste homem negro ou mestiço está nesta passagem do livro “Cultura e opulência do Brasil pelas suas drogas e minas”, do padre jesuíta André João Antonil. Ele é também um exemplo do apagamento da memória negra e africana no Brasil. Embora relegados ao segundo plano nos museus, livros e nas salas de aula, negros e mestiços foram, muitas vezes, protagonistas, em vez de atores secundários, nos grandes acontecimentos da História do Brasil.

O jornalista e escritor Laurentino Gomes Foto: Divulgação
O jornalista e escritor Laurentino Gomes Foto: Divulgação

Para Laurentino, o século XVIII foi decisivo para a formação da África Brasileira. É o período “mais importante da construção das muitas Áfricas que hoje existem no coração do Brasil”, explica o autor, que analisa os marcos da diáspora africana na nossa cultura e costumes. Com a escravidão se tornando cada vez mais um fenômeno urbano, também começa a crescer a participação dos negros na sociedade, assim como as alforrias e o protagonismo das mulheres negras.

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Outro aspecto importante foi superar os retratos anacrônicos da resistência do povo escravizado, que não foi nem a rebelião ininterrupta nem a espera passiva pintadas no passado. Seguindo a linha de uma nova historiografia, o autor traça a luta pela liberdade como processos contínuos e sutis de negociação e barganha.

— Um personagem que me surpreendeu bastante foi o africano João de Oliveira — conta o autor. — Era um escravo traficante de gente escravizada. Dessa forma, acumulou poupança suficiente para comprar a sua própria alforria. Em outras palavras, João de Oliveira passou a traficar escravos com o propósito de deixar de ser escravo. O que também mostra o quanto a escravidão era um processo complexo, repleto de nuances surpreendentes.

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O lançamento do segundo volume de “Escravidão” deveria ter acontecido no ano passado, mas foi colocado em espera devido à pandemia . Até por seu caráter educativo, as publicações de Laurentino costumam ser acompanhadas de grandes turnês, com idas a escolas e participações em eventos pelo país. Como a situação “continua tão ruim ou até pior do que no ano passado”, segundo o autor, a estratégia será toda voltada para o virtual — uma experiência nova para ele.

No intervalo de quase dois anos entre os dois volumes, diversos casos reacenderam as tensões raciais pelo mundo, como a derrubada de estátuas de figuras coloniais e escravistas. No Brasil, falou-se na remoção em São Paulo do monumento ao bandeirante Borba Gato, um dos personagens do livro. Laurentino, porém, prega cuidado quando o assunto é patrimônio público.

— Podemos, sim, derrubar uma estátua, como a de Borba Gato, por exemplo, que, por sinal, é muito feia — diz. — Mas o ideal é que essa decisão viesse depois que tivéssemos a oportunidade de estudar e refletir sobre o seu significado e por que razões esse homem caçador de índios e acusado de assassinato foi promovido à condição de herói em um bairro de São Paulo. Derrubar estátuas não pode se confundir com vandalismo puro e simples, que muitas vezes resulta na destruição de monumentos apenas como resultado de incitamento de determinados grupos em redes sociais.