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Estoicismo, a filosofia que propõe temperança para encarar desafios, se firma como a 'auto-ajuda' da pandemia

Com o início da pandemia, cresceram as vendas de obras como as “Meditações” do imperador-filósofo Marco Aurélio e das cartas de Sêneca
Quadro “A morte de Sêneca” (1615), do pintor flamengo Peter Paul Rubens Foto: Reprodução / Creative Commons
Quadro “A morte de Sêneca” (1615), do pintor flamengo Peter Paul Rubens Foto: Reprodução / Creative Commons

Duas décadas atrás, o professor de Filosofia Aldo Dinucci estava enfrentando problemas no trabalho. Numa visita à biblioteca, esbarrou numa edição das cartas de Sêneca, filósofo estoico do século I, nas quais ele aconselhava Lucílio, governador da Sicília, sobre como enfrentar os tormentos do cotidiano e se tornar mais virtuoso. Estudioso de Sócrates, Górgias e Aristóteles, Dinucci mal conhecia o estoicismo, escola filosófica popular entre os romanos nos séculos III a.C. e II d.C, mas percebeu que podia aplicar as palavras de Sêneca à sua própria vida.

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Passou das cartas de Sêneca para os conselhos éticos de Epiteto e logo começou a praticar exercícios estoicos. Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFSE) desde 2003, Dinucci é um dos principais divulgadores do estoicismo no Brasil, dentro e fora das salas de aula. Ele está planejando a primeira edição brasileira da Stoicon X, a Comic Con dos estoicos, que será realizada virtualmente em 20 de novembro. A Stoicon X é organizada, desde 2012, pelo Modern Stoicism, movimento britânico dedicado a popularizar a filosofia estoica, que, graças a figuras como Dinucci e a fatores como a pandemia, vem ganhando novos adeptos nos últimos tempos.

Entender o sofrimento

Segundo o dicionário “Aulete”, estoico é quem “não se abala diante do infortúnio, que se mostra firme”, é “resignado”, “conformado”. Os estoicos têm fama de serem inflexíveis, extremamente racionais e rejeitarem as emoções, como Spock, personagem de “Jornada nas estrelas” cujo código de ética lembra o de filósofos como Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio. Dinucci, porém, explica que os estoicos não estão livres das paixões, apenas aprenderam a domá-las.

— Os estoicos acreditam que sofremos por ignorarmos as causas de nosso sofrimento. O conhecimento nos livra do sofrimento e nos conduz às quatro virtudes estoicas: coragem, temperança, justiça e sabedoria — diz Dinucci, que publicou uma tradução das “Diatribes” de Epiteto em parceria com a Universidade de Coimbra. — Essas virtudes nos permitem lidar com o mundo de forma mais adequada, substituindo paixões ruins, que vêm acompanhadas de vícios, por paixões boas.

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Está na literatura um reflexo de como o estoicismo, embora tenha entrado em declínio a partir do século IV, vem ganhando novos discípulos. No início da pandemia, a Penguin Random House registrou um crescimento espantoso das vendas de livros estoicos. A procura pelas “Meditações” do imperador-filósofo Marco Aurélio aumentou 28% no primeiro quadrimestre de 2020 em comparação com 2019. Já as vendas de edições físicas e digitais das cartas de Sêneca subiram 42% e 356%, respectivamente.

No Brasil, a estreante editora Somos Livros acaba de lançar “O pequeno manual estoico”, de Jonas Salzgerber, e “Ser estoico: eterno aprendiz”, de Ward Farnsworth. A Intrínseca publicou “A vida dos estoicos”, novo livro de Ryan Holiday, de “O obstáculo é o caminho”, outro título influente do “estoicismo moderno”. No mês que vem, a Penguin-Companhia lança um volume com três diálogos de Sêneca: “Sobre a vida feliz”, “Sobre a providência” e “Sobre o ócio”.

Controle remoto

O encontro do professor Dinucci com Sêneca lembra um pouco o mito de origem do próprio estoicismo. No século III a.C., Zenão, um comerciante fenício que havia perdido seu carregamento de tecido num naufrágio, assistiu a uma palestra sobre Sócrates e, a partir daí, resolveu se dedicar à filosofia, à busca pelo “curso suave da vida”. Os discípulos de Zenão eram conhecidos como “stoikós” porque as aulas do mestre ocorriam no Stoá Poikíle, o Pórtico Pintado, cujas ruínas ainda resistem na paisagem ateniense.

Os estoicos aconselhavam os homens a procurar pelas causas de emoções para domar as paixões ruins com as armas da razão e usar as boas em benefício próprio. Segundo eles, a infelicidade dos homens é resultado não dos infortúnios, os quais não controlamos, mas de como reagimos a eles. O sábio, ensinam os estoicos, é como o arqueiro que tem consciência de que o vento pode desviar sua flecha do alvo, mas nem por isso desiste de treinar.

— O foco do arqueiro está no que ele controla ( a preparação, o treino, a concentração ). Por isso, ele aceita com tranquilidade que o resultado está fora do seu controle — diz Salzgerber, autor de “O pequeno manual estoico”. — Aceitar a realidade não significa desistir, mas reagir de maneira adequada.

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Dono de uma livraria chamada The Painted Porch (O Pórtico Pintado), Ryan Holiday credita o sucesso perene dos estoicos à sa ênfase na vida prática e não em especulações metafísicas:

— O estoicismo é uma filosofia para o dia a dia, que oferece estratégias práticas para que possamos florescer, apesar dos problemas, e usar as quatro virtudes estoicas para responder aos desafios cotidianos .

O estoicismo influenciou o escritor americano Henry David Thoreau, a filosofia de Arthur Schopenhauer e a logoterapia de Viktor Frankl. Há quem enxergue traços estoicos até na “Oração da serenidade” dos Alcoólicos Anônimos, quando diz assim: “Concede-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, a coragem para mudar as coisas que posso e a sabedoria para discernir uma da outra.”

Questão de ética

Segundo John Sellars, professor da Universidade de Londres, o estoicismo costuma atrair “pessoas não religiosas em busca de uma ética e de orientações para a vida”.

A filosofia estoica, cujo declínio coincidiu com a ascensão do cristianismo, também é uma prática espiritual. Existem até mesmo exercícios espirituais prescritos pelo estoicismo, como a meditação, que consiste em, toda noite, refletir sobre o dia que passou e analisar como reagiríamos a situações desafiadoras.

Alguns discípulos estoicos mantêm diários nos quais escrevem suas meditações. Outros copiam passagens de textos estoicos em cadernos para, aos poucos, internalizarem seus ensinamentos. “O pequeno manual estoico”, por exemplo, traz 59 exercícios, como a “visualização negativa” (imaginar tudo o que pode dar errado para se preparar), reduzir o consumo de notícias para economizar tempo e buscar ativamente o desconforto para treinar a resistência e o autocontrole.

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Professor de Direito na Universidade do Texas e autor de “Ser estoico: eterno aprendiz”, Ward Farnsworth dá um curso intitulado “Estoicismo para advogados”.

Ele afirma que bons advogados pensam como estoicos. A primeira tarefa de um advogado, diz ele, é ajudar seu cliente a discernir o que está do que não está sob seu controle. Ao advogar em favor do estoicismo, Farnsworth é direto:

— Filosofia ou é prática ou é perda de tempo. Se o estoicismo não está lhe ajudando a lidar com seus problemas cotidianos, você está praticando errado.

Serviço:

"O pequeno manual estoico"

Autor: Jonas Salzgeber. Editora: Somos. Páginas: 304. Preço: R$ 49,90.

"Ser estoico: eterno aprendiz"

Autor: Ward Farnsworth. Editora: Somos. Páginas: 368. Preço: R$ 69,90.

"A vida dos estoicos"

Autor: Ryan Holiday. Editora: Intrínseca. Páginas: 400. Preço: R$ 59,90.