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Versões absurdas de fatos históricos ganham força e alarmam especialistas

Tem gente negando o Holocausto, dizendo que Hitler era de esquerda, abrandando a ditadura...
Ilustração sobre o quadro "Independência ou morte", de Pedro Américo Foto: Ilustração de André Mello
Ilustração sobre o quadro "Independência ou morte", de Pedro Américo Foto: Ilustração de André Mello

ATUALIZAÇÃO: Em uma versão preliminar desta reportagem, por um erro na edição, a declaração de Lira Neto saiu com uma expressão trocada. A declaração já está corrigida abaixo.

RIO — O governo alemão fez vídeo explicando, o embaixador alemão no Brasil disse que era “uma besteira completa”, estudiosos falaram até ficar roucos. De nada adiantou. A julgar pelas reações online, um número surpreendente de brasileiros pensa como o usuário do Twitter que escreveu isto aqui: “Nazismo era um partido socialista, logo, era de esquerda. Não é um embaixador idiota dizendo o contrário que vai mudar essa verdade”.

A controvérsia está longe de ser exclusividade do Brasil. Mundo afora, fatos históricos irrefutáveis passaram a render debates inesperados (veja mais abaixo) . Toda ciência, aliás, está sendo questionada: terraplanistas desprezam fotos da Nasa e grupos antivacina ignoram apelos médicos. Depois das fake news , estamos na era da fake History .

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Especialista em história da filosofia e da religião, o professor da UFRJ Marcio Tavares d’Amaral vê um momento de transição que põe em xeque dois milênios de conhecimento.

— Com muitas informações circulando, e colocadas na mesma hierarquia, não há mais verdades absolutas na sala de aula. Cada um cria sua narrativa — diz d’Amaral.

TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO

No caso da História, um sintoma são livros — e vídeos e memes — que rebatem fatos com argumentos simplistas.

“Nosso cérebro não é muito bom para separar narrativas falsas e verdadeiras se elas parecerem fazer sentido. Por isso é importante ensinar não o que pensar, mas como pensar. ”

Michael Shermer
Escritor

Um dos primeiros a identificar o fenômeno, o filósofo americano Robert Todd Carroll chamou isso de “pseudo-História”, algo como “reescrever o passado com intenções do presente”. Seu pupilo Michael Shermer fundou a Skeptics Society, dedicada a desbaratar teorias da conspiração, e diz que a questão não está só na internet, mas em nossos neurônios:

— Nosso cérebro não é muito bom para separar narrativas falsas e verdadeiras se elas parecerem fazer sentido — diz Shermer, autor do livro “Denying History” (“Negando a História”, de 2009), escrito em parceria com o historiador Alex Grobman. — Por isso é importante ensinar não o que pensar, mas como pensar. É preciso refletir criticamente sobre o presente e os fatos passados.

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Tentativas de reescrever a História, como a corrente que afirma que não houve repressão durante a ditadura civil-militar, não são pontos fora da curva. Estão no subterrâneo e sempre prontas a ressurgir para afetar a democracia, acredita a historiadora Heloísa Starling, coautora de “Brasil: Uma biografia”, ao lado da também historiadora Lilia Moritz Schwarcz.

— O totalitarismo mente até mesmo para quem sabe que é mentira. Se essa pessoa não está habituada a pensar, fica desorientada.

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Diante de tantas “versões dos fatos”, salta aos olhos uma constatação: História do Brasil não parece ser o forte do brasileiro médio. Basta lembrar o que aconteceu na supersérie “Os dias eram assim”, da TV Globo. Exibida no ano passado, a produção ganhou cenas extras justamente para explicar seu pano de fundo, a ditadura militar.

Bruno Mazzeo, criador da comédia “Os filhos da pátria”, que se passava durante a Independência, também se deu conta da lacuna.

— Mergulhando no tema, percebi como nossa História é ensinada en passant — diz Mazzeo, que trabalha na segunda temporada da série, prevista para ir ao ar no ano que vem, desta vez passada em 1930. — É fundamental ver como repetimos ciclos. Até para entender como chegamos a 2018 desse jeito.

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“PARA QUEM TEM PRESSA”

Autor de livros-reportagem e biografias que aproximam passado e atualidade, Lira Neto defende que boatos vingam por uma união de forças.

—  De um lado, temos um sistema de ensino deficiente, que produz analfabetos funcionais, indivíduos que não leem, que não possuem nenhum mínimo verniz cultural — diz. —   De outro, temos uma mídia intelectualmente simplória, que em nome da polêmica mais rasa possível incentiva e promove certos revisionismos históricos, incensa autores teoricamente toscos, aqueles que celebram versões ditas "politicamente incorretas" ou escrevem livros tacanhos de história "para quem tem pressa" ou "sem as partes chatas".

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“Nenhuma ditadura do século XX matou menos do que a brasileira, mas uma morte por motivo político já é injustificável.” Esta declaração, do jornalista Leandro Narloch, circula em vídeos de extrema-direita — mas só até vírgula. Ou seja, o autor do provocador “Guia politicamente incorreto da História do Brasil”, que critica a historiografia tradicional, foi vítima da distorção dos fatos. E diz que o fenômeno atual é uma reação a anos em que a balança pendeu para outro lado.

— Por muito tempo a esquerda se valeu dessa fake History . Num tempo em que era estimulante se posicionar contra o capitalismo, o que aprendemos sobre influência estrangeira foi com viés militante, pouco moderado — diz Narloch. — Vejo hoje uma reação desinformada a essa hegemonia. Mas espero que cheguemos a um acordo equilibrado no futuro.

"Independência ou morte" (1888), quadro de Pedro Américo Foto: Reprodução
"Independência ou morte" (1888), quadro de Pedro Américo Foto: Reprodução

UM RETRATO MAQUIADO DA INDEPENDÊNCIA

Na primeira imagem desta reportagem, o ilustrador André Mello fez sua própria e surreal versão da tela “Independência ou morte”, de Pedro Américo (1843-1905). A versão correta é esta acima, que pode ser vista no Museu do Ipiranga, em São Paulo — ou não, já que o espaço está fechado há cinco anos. Cabe lembrar, porém, que o próprio Pedro Américo não foi lá muito fiel à História.

Graças ao quadro, imaginamos o de setembro de 1822 com Dom Pedro I montado num cavalo, de espada na mão, soltando o brado retumbante. Não foi assim.

O pintor admitiu que a cena tem muito mais da sua imaginação do que da realidade, já que 66 anos separam a obra, concluída em 1888, do acontecimento. Não havia, segundo especialistas, relatos suficientes para que a cena fosse reproduzida com exatidão.

Tudo indica que Américo carregou nas tintas — ou melhor, deu uma maquiada. Entre as imprecisões históricas, analistas modernos apontam desde o tamanho da comitiva (dificilmente Dom Pedro viajava com mais de 14 pessoas) ao apuro dos uniformes, elegantes demais para a ocasião. Além disso, é muito mais provável que Dom Pedro estivesse numa mula (e não num cavalo). E só há registro da existência da casa vista ao fundo muitos anos depois.

Inegável mesmo é que a tela se tornou a mais difundida representação da Independência do Brasil e virou referência para o imaginário da construção nacional.