É improvável que os cadernos inéditos de Carolina Maria de Jesus integrem futuras edições dos diários reunidos em “Casa de alvenaria”. Em texto publicado nesta terça-feira (16) no GLOBO, Tom Farias, biógrafo de Carolina, relata a existência de três cadernos redigidos pela escritora entre 1960 e 1961 que fazem parte do acervo do jornalista Audálio Dantas (1929-2018), responsável pela descoberta da autora de “Quarto de despejo”. O conteúdo dos três não consta dos dois volumes de “Casa de alvenaria” publicados recentemente pela Companhia das Letras, com diários escritos entre agosto de 1960 e dezembro de 1963. Ao GLOBO, a jornalista Juliana Dantas, filha de Audálio, afirmou que a representação negativa de seu pai no livro inviabiliza qualquer colaboração com a editora.
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A edição da íntegra dos diários na “Casa de alvenaria” revelou fissuras na relação entre a escritora e o jornalista. Carolina, que alcançou o estrelato literário depois que Audálio publicou trechos de seus cadernos no jornal Folha da Noite, chega a acusá-lo de transformá-la em escrava.
Juliana tem usado as redes sociais para questionar “insinuações” e “acusações graves” contra seu pai, como ilações de que ele teria se “aproveitado” da ingenuidade de Carolina. Ela reclama, por exemplo, do “tom irônico e desrespeitoso” do prefácio. Assinado por Vera Eunice de Jesus, filha da escritora, e Conceição Evaristo , o texto diz que Carolina queria se dedicar a outros gêneros literários, mas continuou escrevendo diários por “um gesto de comando do jornalista Audálio Dantas”.
— É injusto com alguém que dedicou a carreira à defesa dos direitos humanos. Alguém que, claro, pode errar e com certeza errou em algum momento, mas a ele não foi dado o benefício da dúvida. Os documentos que temos teriam solucionado várias dúvidas — diz ela. — Audálio Dantas não é o antônimo de Carolina Maria de Jesus. E Carolina não precisa de antagonistas para ser protagonista. Sua história e sua obra já a fazem grande e inteira. Assim como a história e a obra de Audálio.
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O acervo de Audálio contém relatórios detalhados de prestação de contas para Carolina, além da correspondência entre os dois.
Em nota, a Companhia das Letras disse que, em 2020, por intermédio de Vera Eunice, consultara a viúva de Audálio sobre a possibilidade de pesquisar no acervo do jornalista outros cadernos de Carolina, “o que não foi permitido por causa da pandemia”. E reafirmou o “interesse em incluir o material inédito em futuras edições do livro”.
Juliana também reclama do tratamento dispensado a Audálio pela exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para brasileiros”, no Instituto Moreira Salles (IMS), em São Paulo. Segundo ela, a mostra opta por “fingir que Audálio Dantas nunca existiu, a não ser quando havia necessidade de alfinetá-lo”.
— Há poucas fotos em que ele aparece. Há um manuscrito de Carolina em que ela dá a entender que ele tirou vantagens indevidas e que a ela só sobrou decepção — lista Juliana. — Um texto dos curadores diz que Audálio foi responsável por reforçar o estereótipo de “escritora favelada”, o que é uma afirmação equivocada, de quem não leu o que ele escreveu sobre ela.
‘Relação complexa’
João Fernandes, diretor artístico do IMS, rebate a questão do apagamento e lembra que “a exposição se debruça sobre a vida e a obra” da escritora, assim como “sobre a sua dimensão de grande intérprete do Brasil”, e não tem como tema sua relação com Audálio.
— A relação os dois foi extremamente complexa e é essencial para a compreensão da riquíssima contribuição de ambos para o Brasil. A exposição mostra o que há de complexo nela — diz ele. — Pensamos que ela só poderá ser melhor compreendida a partir do estudo de materiais que sabemos existir no acervo relacionado com Carolina que a família de Audálio tem guardado com muito cuidado.
Vera Eunice de Jesus disse ao GLOBO que não entende “por que pessoas querem ter obras de Carolina na gaveta”.
— Tem muita coisa que Carolina escreveu que estava com Audálio e eu nunca consegui ver. Tenho lutado para que as pessoas se conscientizem e devolvam o que era de Carolina. Tudo o que é de Carolina Maria de Jesus não é meu. É do mundo — afirma.