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Filósofos e cientistas explicam ‘pensamento vegetal’, tema da 19ª Flip, que começa neste sábado

19ª Festa Literária Internacional de Paraty promete discutir literatura e plantas, rever relação de humanos com a flora e analisar o que podemos aprender com os vegetais
Detalhe da instalação “Floras”, que a artista Rejane Cantoni apresenta a partir de dezembro no CCBB do Rio Foto: Divulgação
Detalhe da instalação “Floras”, que a artista Rejane Cantoni apresenta a partir de dezembro no CCBB do Rio Foto: Divulgação

Ao apresentar os primeiros autores confirmados para a 19ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) , no mês passado, o filósofo Evando Nascimento , um dos curadores do evento, surpreendeu ao afirmar: “nosso lugar de fala é vegetal” . Este ano, a Flip não tem um autor homenageado, mas um tema: “Nhe’éry, plantas e literatura”. “Nhe’éry” é como os guaranis chamam a Mata Atlântica e quer dizer “onde as águas se banham”. Autor do recém-lançado “O pensamento vegetal” (Civilização Brasileira), Nascimento explica ao GLOBO o objetivo do uso heterodoxo do “lugar de fala”, expressão repetida pelos movimentos negro, feminista e LGBTQIAP+ para reforçar o ponto de vista de quem fala sobre opressões que experimentou na própria pele.

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— Quis referir ao fato de que a Flip ocorre em Paraty, uma região de Mata Atlântica. E apontar como os vegetais são cidadãos de terceira classe entre os viventes. Mais ainda do que os tão maltratados animais, as árvores são abatidas sem dó, porque não contra-atacam nem gritam. São existências fragilizadas ainda mais pelos poderes neofascistas — afirma. — Em 2019, Bolsonaro disse que não lhe interessava nem o índio nem “a porra da árvore” , mas o garimpo. Essa é a expressão mais bem acabada de “fitofobia”.

O ensaio de fôlego de Nascimento se insere na chamada “virada vegetal”, movimento iniciado no final do século passado para pôr em xeque o antropocentrismo e repensar a relação dos humanos com os seres verdes com quem compartilhamos o planeta. A virada vegetal mobiliza, além de Nascimento, cientistas como o botânico italiano Stefano Mancuso (convidado da Flip), defensor de que as plantas são inteligentes; filósofos como Emanuele Coccia, também italiano; e outra atração da festa, o luso-canadense Michael Marder. Todos ambicionam dotar as plantas de dignidade metafísica e afirmam que elas têm lições políticas valiosas a nos dar.

Seres com alma

Desde a Grécia Antiga até a modernidade, a relação dos filósofos com o mundo vegetal foi caracterizada pelo que Nascimento chama de “fitofobia”: horror ou desprezo pelas plantas, que, por serem tão diferentes de nós, não poderiam de modo algum ter vida interior ou inteligência. Autor de “Plant thinking: A philosophy of vegetal life” (O pensar das plantas: uma filosofia da vida vegetal), Marder afirma que a metafísica ocidental, ou seja, o pensamento filosófico por excelência, consolidou-se em oposição às plantas. Para Platão , o ser, isto é, aquilo que tem mais realidade, são as deias eternas e imutáveis, e não o mundo concreto.

As plantas, diz Marder, são o exato oposto disso: são pura metamorfose, não apenas nascem e morrem, mas também são compostas de diversas partes que estão sempre a brotar e se decompor. Aristóteles, discípulo de Platão, concebia as plantas como dotadas de certa espécie de “alma”, portanto, de algo que as animava. Porém, para ele, os vegetais eram inferiores aos animais por serem incapazes de se locomover.

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Autor de “Metamorfoses” (Dantes), Coccia lembra costumamos associar plantas ao aposto da inteligência. O verbo “vegetar”, por exemplo, que em sua origem significava “vicejar”, ganhou o sentido de “viver apenas o corpo, sem atividade mental”. Os franceses, aliás, não hesitam em recorrer às plantas para insultar as pessoas: “artichaut” (alcachofra) é alguém carente, “être bonne poire” (uma boa pera) é ser ingênuo. Também usam as expressões “être bête comme chou” (ser estúpido como um repolho) e “avoir un pois chiche dans la tête à la place du cerveau” (ter um grão de bico no lugar do cérebro).

Ausência de inteligência?

Segundo Coccia, afirmar que as plantas são inteligentes ofende a todos: dos veganos, que temem limitar ainda mais seu cardápio, aos antropólogos, que não sabem mais o que diferencia a Humanidade das outras espécies. Ele acredita que talvez os psicanalistas tenham pistas mais quentes das razões pelas quais insistimos em impingir aos vegetais a ausência de vida intelectual. Diferentemente dos animais, as plantas não têm um sistema nervoso central. No entanto, argumenta Coccia, não ter um cérebro não é índice de falta de inteligência. Pode até ser o contrário.

— Precisamos redefinir inteligência e consciência. Nos anos 1970, o biólogo [chileno] Humberto Maturana já havia proposto que se identificasse inteligência à vida e a estendêssemos a todos os seres vivos. Ser inteligente é ser capaz de resolver problemas de forma criativa. Todos os seres vivos são capazes disso — diz o filósofo, que dá aulas na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. — Centralizar o sistema nervoso não é uma estratégia estúpida se você é árvore e passa séculos no mesmo lugar. É melhor ou multiplicar as partes responsáveis por determinadas atividades, como a sexual, desempenhada pelas flores, ou não fazer tudo com partes não especializadas. As plantas pensam com o corpo todo.

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Os teóricos do pensamento vegetal acreditam que as plantas, além de alargar nossas concepções de sujeito, consciência e inteligência, também podem inspirar soluções para dilemas políticos contemporâneos. O botânico Stefano Mancuso, pesquisador da “neurobiologia vegetal”, é um entusiasta da estrutura descentralizada das plantas. Os homens, diz ele, criaram instituições à sua imagem e semelhança: hierárquicas, verticais, comandadas por um cérebro. O resultado é ineficiência, burocracia e autoritarismo. O mundo vegetal é mais democrático. Tanto que sua Constituição da “nação das plantas” reconhece a soberania de todos os seres vivos e proíbe hierarquias e o uso de recursos não renováveis.

Para o engenheiro florestal alemão Peter Wohlleben , autor de “A vida secretas das árvores” (Sextante), o mundo vegetal tem muito a nos ensinar sobre cooperação.

— Há um mal-entendido quando ao significado da expressão “sobrevivência dos mais aptos”. Não são os mais fortes que sobrevivem, mas os que se adaptam melhor a um ecossistema. E adaptação não é briga, é cooperação. As árvores não são capitalistas disputando recursos. Elas cooperam — explica ele. — A floresta não quer perder nenhuma árvore. Juntas, elas conseguem; apoiam umas às outras, diminuem a temperatura, aumentam a umidade e produzem nuvens de chuva.

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O filósofo Michael Marder lembra que Aristóteles definiu o homem como um “animal político”. Para ele, porém, é justo chamar a Humanidade de “planta política”. Como os vegetais, somos uma “multiplicidade que vive em simbiose com outros seres”. Marder afirma ainda que existem movimentos políticos vegetais, como o Occupy Wall Street.

— Alguns movimentos políticos seguem o modelo animal, como as manifestações que atravessam as ruas. Já o Occupy Wall Street, em vez de marchar pelas ruas, ficou parado, fincou raízes. Como uma planta, o movimento era descentralizado e brotou em diversas partes do mundo para depois fenecer — diz ele, que é professor da Universidade do País Basco.

Para Nascimento, o curador da Flip, as plantas podem ensinar os seres humanos a vegetar, no melhor sentido do termo: “levar uma vida saudável, em contato pacífico com os animais e as plantas, esses outros viventes tão maltratados”.